A Abordagem Gestáltica compreende o desenvolvimento humano como uma jornada contínua de descoberta e realização de potencialidades. Em um estado saudável, a pessoa não apenas satisfaz suas necessidades imediatas, mas se transforma constantemente, aprimorando-se em contato com o mundo. O ambiente, nesse processo, não é mero pano de fundo, mas parte ativa da constituição do ser, podendo tanto favorecer quanto dificultar o crescimento.
Três fatores são destacados como fundamentais para o desenvolvimento. O primeiro são as interações respeitosas. O diálogo autêntico e o encontro genuíno são vistos como condições essenciais para a ampliação da consciência e para a confirmação da singularidade de cada indivíduo. Sentir-se amado, legitimado e protegido oferece suporte para o fortalecimento do autossuporte, permitindo que a pessoa confie em si e em seu potencial. Essa necessidade se manifesta tanto nas relações íntimas quanto no contato com a sociedade em suas dimensões culturais, políticas, religiosas e econômicas, revelando o impacto do campo sobre a constituição do sujeito.
O segundo fator é a descoberta experiencial. Na visão gestáltica, o verdadeiro aprendizado não se dá pela teoria, mas pela vivência direta. Fritz Perls afirmava que é no contato — na mastigação e assimilação da experiência — que se desenvolve o discernimento pessoal, a autonomia e a singularidade. A cada encontro com o mundo, formam-se gestalten que mobilizam a pessoa à ação, buscando o equilíbrio entre suas necessidades e as demandas do ambiente. Quanto mais abertura e receptividade houver nesse processo, maior será o aprendizado. Cabe aos cuidadores e educadores, portanto, oferecerem um ambiente seguro, que sustente a exploração sem sufocá-la, permitindo que a criança enfrente frustrações proporcionais à sua capacidade de elaborar recursos para lidar com elas.
O terceiro fator é o ajustamento criativo. Como a vida não apresenta roteiros fixos, crescer é reinventar-se a cada situação, encontrando formas singulares de responder ao ambiente. Ajustar-se criativamente significa equilibrar desejos e restrições, descobrindo novas maneiras de ser, interagir e transformar o campo em que se está inserido. Nesse movimento, cada momento se converte em oportunidade de crescimento.
A maturação, portanto, é um processo contínuo: da dependência do suporte ambiental à construção do autossuporte. Ela implica não apenas superar frustrações inevitáveis, mas também confiar na autorregulação organísmica, que assimila do meio aquilo de que necessita, tanto em nível fisiológico quanto psicológico. O crescimento se dá justamente no ajustamento a situações sempre novas, transformando organismo e ambiente ao mesmo tempo.
Nesse horizonte, saúde não é ausência de sintomas, mas equilíbrio dinâmico na coordenação da totalidade que somos. A pessoa saudável é consciente, responsável e capaz de ser o centro integrador de sua própria existência. Interioriza, elabora e exterioriza experiências, conduzindo seu projeto de ser. É alguém que se autogerencia, que age com intuição e espontaneidade no aqui-agora, intervindo sobre o mundo e deixando-se também transformar por ele.
Goldstein distinguiu dois modos de comportamento que ilustram esse processo. O ordenado emerge da prioridade situacional, sendo espontâneo, harmonioso e satisfatório, permitindo o prosseguimento da interação. Já o desordenado surge em contramão à figura do momento, revelando desarmonia e hesitação, como se o organismo perdesse sua liberdade criativa. Nesse sentido, a autorregulação é compreendida como um “acordo” entre organismo e ambiente, fenômeno que só acontece na fronteira de contato — o “entre” — e que garante tanto a autopreservação quanto a autoatualização.
Enquanto a autopreservação busca manter a unidade e estabilidade do organismo, a autoatualização o impulsiona para o crescimento. Em condições normais, a tendência é que o organismo invista em sua atualização; porém, em condições adversas, pode recuar para a simples defesa da sobrevivência. Ainda assim, a pessoa não está determinada de antemão: é ativa, criadora, capaz de elaborar novos projetos de vida e de se transformar ao longo da existência. Nesse processo, torna-se artesã de si mesma, em permanente “vir a ser”.
A perspectiva existencial enriquece esse olhar, lembrando que a liberdade e a responsabilidade constituem a essência da condição humana. Frankl mostrou que mesmo diante do sofrimento extremo, a busca por sentido sustenta a vida, pois “quem tem um porquê, suporta quase qualquer como”. A Gestalt-terapia compartilha dessa confiança no potencial humano, entendendo a pessoa não como vítima passiva de causas externas, mas como autora de sua própria história, ainda que limitada por circunstâncias de campo.
Isso não significa ignorar restrições. O potencial humano é significativo, mas não ilimitado. A cada escolha feita, outras tantas são renunciadas. Esse movimento, inevitavelmente acompanhado de ansiedade, exige discernimento e coragem para sustentar a responsabilidade por nossas decisões. A Gestalt-terapia, ao enfatizar a awareness, busca justamente ampliar a consciência para que o cliente perceba suas possibilidades e reconheça sua coparticipação nos acontecimentos de sua vida, sem reduzi-los a fatalidades externas.
Assim, o humano é concebido como ser-no-mundo, em relação recíproca com o ambiente, em permanente processo de transformação. Não é um ser já definido, mas um projeto vivo, que se constrói na fronteira de contato entre liberdade e responsabilidade. A crise existencial, nesse contexto, não é fracasso, mas oportunidade de revisão, de criação de novos sentidos e de renovação da própria existência. O sofrimento aparece como sinal de bloqueio da autorrealização, mas também como apelo à atualização.
A Gestalt-terapia, ao integrar fundamentos humanistas e existenciais, reafirma a pessoa como singular, concreta, capaz de escolhas e de transformação. A cada instante, ela faz o melhor ajustamento possível com os recursos que dispõe. O papel da psicoterapia é ampliar seu campo de awareness, possibilitando novas compreensões e desbloqueando novas formas de agir. O ser humano, enfim, é um vir-a-ser contínuo: livre, responsável e criador de sua própria trajetória no mundo.
Na Gestalt-terapia, autossuporte é a capacidade de sustentar-se internamente diante dos desafios da vida — uma forma de estar em si mesmo sem colapsar diante das frustrações, com liberdade para escolher, arriscar, se posicionar. Não se trata de uma independência narcisista, mas de uma autonomia enraizada. É o organismo confiando em si para responder criativamente ao ambiente. Um ser que, diante da realidade, afirma: “eu posso, eu suporto, eu me aguento aqui e agora.”
Heterossuporte, por sua vez, é o apoio recebido do ambiente — aquele que segura a escada enquanto você sobe. É o cuidado, o toque, o reconhecimento, a presença que confirma: “você existe, você importa, eu vejo você.” Essencial na infância, ele continua sendo necessário sempre que a alma se fragiliza ou se despedaça.
Embora pareçam opostos, autossuporte e heterossuporte não competem — dançam juntos numa coreografia sutil da existência. Não há autossuporte genuíno sem que, antes, se tenha sentido o chão firme de outro alguém.
Eis o segredo: o autossuporte nasce do heterossuporte. A criança só aprende a caminhar sozinha depois de ser sustentada por mãos firmes. O sujeito só se arrisca a ser inteiro quando, em algum momento, foi permitido ser metade — foi acolhido mesmo quebrado, foi visto mesmo errado. O que favorece o autossuporte é o contato genuíno, a confirmação, a liberdade de experimentar sem medo da punição. Um ambiente suficientemente bom, onde é possível errar, frustrar-se e, ainda assim, ser amado.
Não se constrói autossuporte no vácuo. É na relação — na troca, no toque, no espelho do outro — que a pessoa se experimenta inteira e, pouco a pouco, aprende a se sustentar. Quem deseja ser forte precisa, antes, permitir-se ser amparado. Porque, antes de andar com as próprias pernas, alguém precisou carregá-lo. E isso não é fraqueza — é o início da força.
O que fragiliza o autossuporte é o campo que sufoca, abandona ou fragmenta: a superproteção, que impede o uso dos próprios recursos; a negligência, que desconsidera as necessidades mais básicas; e a opressão, que desqualifica e impõe pressões desproporcionais. Qualquer campo que diga “não sinta isso”, “não seja assim”, “não dá conta” mina a possibilidade de ser, sentir e agir em presença.
Cuidado pode curar, mas também pode sufocar. A linha entre o amor e a prisão, entre o estímulo e a violência, é fina — e muitas vezes traçada com boas intenções. Mas boas intenções não impedem tragédias. A superproteção sussurra à criança: “Você não pode. Eu faço por você.” E ela cresce acreditando que o mundo é demais. Cada frustração vira abismo. Cada desafio, um monstro. O campo, que deveria fortalecê-la, torna-se um travesseiro fofo demais, onde ela afunda e desaprende o risco. O autossuporte, nesse cenário, não floresce — atrofia. O eu se constrói à sombra do outro e hesita quando precisa agir por si.
A opressão caminha no extremo oposto, mas com o mesmo dano: exige da criança mais do que ela pode dar. Quando chora, escuta: “engole o choro.” Quando sente medo: “não seja fraca.” Sua dor é ridicularizada, sua humanidade desautorizada. Nesse campo, ela aprende a se abandonar para sobreviver, moldando-se ao desejo alheio. A autenticidade é sacrificada no altar da obediência, e o que sobra vira sintoma — às vezes neurose, outras, psicose: o self fragmentado diante de um mundo insuportável.
Mas isso não termina no indivíduo. Olhe para o fio que atravessa gerações: um pai que nunca foi ouvido, não sabe escutar. Uma mãe exigida demais, exige demais. Outra, ferida, torna-se superprotetora. O trauma se torna herança — não só genética, mas afetiva, cultural, simbólica. Os padrões se repetem por automatismo: “Foi assim comigo, será assim com você.” Até que alguém diga: basta.
Esse alguém pode ser você. Que olha para os fantasmas, que sente a dor que não encaixa, e decide não repetir — mas compreender. Porque só quem vê o enredo pode escrever um novo final. Só quem elabora o que foi negado pode curar. É nesse instante que o passado deixa de ser destino. E a criança ferida que mora em você começa, enfim, a ser cuidada.
O medo do vazio não surge do nada. Ele é filho de experiências em que o apoio falhou. Ambientes em que o heterossuporte era ausente, frágil ou opressor geraram indivíduos inseguros, incapazes de confiar. Vulnerabilidade não cuidada se transforma em trauma. E o bloqueio de contato, frequentemente confundido com fraqueza, é, na verdade, uma resposta sábia à dor — um gesto de autopreservação. Mecanismos como deflexão, retroflexão, confluência e introjeção não são falhas — são modos criativos de proteger a integridade do organismo num mundo que ameaçava despedaçá-lo.
Na Gestalt-terapia, suporte é a capacidade de permanecer presente e em interação com o que acontece no aqui-agora, sustentando as tensões do campo pessoa-mundo por meio do corpo, dos sentidos, das relações. Cada etapa do processo de contato oferece recursos — e é na soma deles que o autossuporte se estrutura. A alienação, ao fragmentar essas etapas, enfraquece os apoios — como quem aprende a ignorar o próprio corpo e perde o chão das sensações.
Fritz Perls compreendia a neurose como um distúrbio do desenvolvimento, uma interrupção na atualização do self. O ser humano, para ele, é uma totalidade integrada, autorreguladora, inseparável do campo em que vive. Esse campo o transforma — e é por ele transformado (Pinto, 2016). Como afirma Tenório (2012), o funcionamento saudável dos sistemas sensório, motor e cognitivo depende da qualidade das relações desde os primórdios da existência. É o contato pleno, dialógico, respeitoso, que permite ao sujeito sentir-se digno, reconhecido em sua singularidade — e é esse contato que propicia crescimento e desenvolvimento (Frazão, 2015; Silva & Alves, 2020).
Na Gestalt-terapia, compreende-se que padrões e sofrimentos emocionais podem atravessar gerações quando experiências de dor e carência não são devidamente integradas. A neurose, nesse horizonte, revela-se como uma interrupção no desenvolvimento do self, moldada em campos familiares e culturais onde não houve espaço para a expressão autêntica do ser. Sentimentos como medo, raiva e tristeza, quando reprimidos precocemente, conduzem a um modo de existir adaptado às expectativas do entorno, em detrimento da espontaneidade. Para sobreviver emocionalmente, a criança se curva, silencia, fragmenta. O eu que se forma, moldado por essa adaptação, mais tarde se manifesta em sintomas e sofrimentos que ecoam um passado não digerido.
O campo relacional é a chave para compreender esse processo. O sujeito não é uma ilha, mas parte de um sistema vivo de vínculos. Por isso, o sofrimento de um indivíduo muitas vezes carrega dores que não começaram com ele. Pais, avós, bisavós — histórias que se entrelaçam, silêncios que se perpetuam. Não é apenas o discurso que transmite esses padrões, mas a ausência de elaboração afetiva. Aquilo que não foi chorado, nomeado ou simbolizado, reaparece no corpo, nos laços, nos destinos.
Diante disso, a Gestalt-terapia oferece um caminho de awareness e responsabilização. Um convite à escuta das raízes que nos habitam, não para atribuir culpas, mas para romper os automatismos que mantêm viva a repetição. O processo terapêutico torna-se um campo de encontro, onde a história pode ser contada de outro modo — mais autêntico, mais inteiro. Reconhecer os legados recebidos é também reconhecer que há força e beleza neles. Romper com o que adoece não é trair a família, mas dar novos contornos à herança, com afeto e consciência.
Curar é dar voz ao que foi silenciado. É permitir que a dor ancestral encontre espaço para ser sentida, simbolizada, transformada. Para isso, o trabalho clínico com a dimensão transgeracional exige escuta sensível, presença encarnada e coragem para sustentar a dor até que ela possa ser elaborada. Nesse gesto, o passado deixa de ser prisão e se converte em potência. A vida, enfim, pode seguir mais leve, mais livre — e mais fiel ao que se é.
Na clínica, um fenômeno sutil — e cada vez mais frequente — assombra os terapeutas atentos: o cliente que vê, entende, nomeia… mas não muda. Ele chega em sofrimento, escancara o nó — “estou numa relação abusiva, essa pessoa não me respeita” — e, sessão após sessão, mergulha na clareza do dilema. Acolhemos, discriminamos, devolvemos. Oferecemos o mapa: sustentar limites ou se retirar. O cliente vê. Concorda. Sofre. Mas não age. Até que, um dia, ele sai da terapia. Diz que “vai tentar quando estiver pronto.” E ficamos com uma pergunta ardendo: o que está faltando? Por que o impasse não se move?
A clareza não basta. Dar consciência não é o mesmo que gerar movimento. O organismo não se transforma pela via do ego que entende, mas pela via do self que experimenta. O cliente pode estar lúcido — e ainda assim impotente. Preso num corpo que não sente que pode, que nunca aprendeu a sustentar-se, que nunca teve permissão para agir.
Na clínica, o papel do terapeuta não é apenas facilitar a clareza ou sustentar o campo — é tocar. Ajudar a remover a armadura. Porque ser vulnerável é, antes de tudo, estar disponível para ser tocado. E enquanto o cliente se protege rigidamente, ele não se transforma. É preciso evocar o suporte emocional e experiencial necessário para sustentar a mudança.
Saber que se está numa relação abusiva não liberta. O que liberta é se ver ali dentro, com raiva, medo, vergonha — e, mesmo assim, sentir que há força suficiente para o próximo passo. Awareness sem apoio é crueldade refinada. Por isso, a Gestalt-terapia fala de amor encarnado, de experimentos vivos, de corpo em cena.
Já experimentou pedir à cliente que encene o momento em que tenta impor um limite? Já a colocou diante da cadeira vazia do abusador e sustentou o silêncio até que a raiva emergisse? Já esperou que o corpo dissesse aquilo que as palavras hesitam em revelar?
Enquanto a intervenção for apenas verbal — “ou você faz isso, ou aquilo” — ela ainda pode se esconder na impotência. Mas, se vivencia o impasse na sala, com você ali, sentindo que pode atravessar o medo, algo dentro dela começa a se mover. Confiar apenas na racionalidade é esquecer que o bicho que mora no porão não responde à lógica — responde ao contato.
E não, não se trata de salvar o cliente. Nem de forçar processos. Trata-se de criar um campo tão vivo, tão denso, tão encarnado, que o organismo reconheça sua necessidade e se engaje com ela. A raiva precisa ser sentida. O medo, nomeado no aqui-agora. A escolha, ensaiada. Não basta falar sobre a relação — é preciso revivê-la no corpo, no campo, na presença de um terapeuta que testemunha, provoca, sustenta.
É preciso tocar a alma — não apenas iluminar a mente. Fazer o cliente viver o impasse até que, do fundo do organismo, venha o grito: “basta.” Esse grito não virá do argumento — virá da exaustão genuína, da dor que não se quer mais, da força reencontrada. Só então o movimento poderá nascer. E se ainda não nascer… algo já foi plantado.
Como lembra Araújo (2002), Perls nos ensinou a não nos render ao status quo, mas a sermos criativos com responsabilidade. É essa ousadia — viver com presença — que a Gestalt-terapia propõe. Uma psicoterapia eficiente é, inevitavelmente, um risco social (Perls, Hefferline & Goodman, 1997). Porque nos faz romper com o que adoece, tocar o que foi silenciado, experimentar o inédito.