O holismo nos convoca a perceber que tudo é totalidade, tudo se relaciona e tudo está em constante transformação (Ribeiro, 2011). Esses princípios não se justapõem: são faces de uma mesma dinâmica viva, onde perceber o todo é já tocar a interdependência — e onde essa relação contínua implica em mudança inevitável.
Nesse campo em fluxo, o contato se revela como o próprio modo de existir das totalidades. Ao entrar em contato, partes se reorganizam, figuras emergem e o campo se redesenha. Nenhum elemento está isolado: o toque de um afeta o compasso de todos. Assim, cada gesto, cada escolha, cada afeto, por menor que pareça, ecoa no todo, reconfigurando-o.
Smuts compreendia o universo como um organismo criativo, onde matéria, vida e mente são estágios evolutivos de uma única energia em atualização constante. Para ele, a mente — ápice da autoconsciência — é o “órgão do holismo”, capaz de perceber, integrar e transformar. Em termos gestálticos, é a função awareness que atualiza o campo, possibilitando a autorregulação criativa do self em contato com o mundo.
A evolução, então, não é mera soma de partes nem simples troca de formas. Ela é o resultado do contato entre totalidades que se ajustam, se influenciam, se atravessam. Cada parte, ao se modificar, solicita um reajuste do todo — e o todo, ao mudar, reverbera de volta em suas partes, num ciclo de coemergência contínua (Lima, 2008).
Neste cenário, o contato é expressão da própria força holística do universo: é quando a energia se organiza para se reconhecer, se afetar e se recriar. Assim, todo ser humano não está simplesmente “dentro da natureza” — ele é natureza em ato, campo em forma humana, presença em mutação.
Como diz Ribeiro (2021), “tudo é uma coisa só” — não num caos indiferenciado, mas num campo de singularidades que se distinguem não por essência fixa, mas por como sua energia se atualiza na relação. Esse movimento é vida, alma, emoção. É aquilo que nos atravessa quando encontramos um olhar que nos vê, uma perda que nos rasga, um silêncio que nos transforma.
Portanto, falar de contato é falar de mudança. E falar de mudança é reconhecer o holismo em ato: toda parte que se movimenta convoca o todo a evoluir. E toda evolução, quando verdadeira, nasce no ponto de contato entre aquilo que foi, aquilo que é… e aquilo que ainda pulsa para vir a ser.
O ciclo do contato, na Gestalt-terapia, não é um conceito — é um organismo vivo em processo. Ele descreve o fluxo pelo qual o ser humano se autorregula na relação com o ambiente, buscando satisfazer suas necessidades a partir da interação entre self e mundo. Não há self isolado — há self-em-contato. Não há necessidade estanque — há campo em movimento.
A Gestalt reconhece que o self só se dá na borda do contato. O que chamamos “eu” é a dança entre o organismo e o ambiente. Cada ciclo é um ciclo de vida e morte. O que não é vivido, apodrece. O que é integrado, floresce.
E onde há bloqueio, há uma figura congelada — um gesto interrompido. Um movimento que queria acontecer, mas foi amputado por medo, trauma ou repetição. Assim nascem as neuroses: como trilhas que se tornaram valas. Como música que nunca resolve.
Na prática terapêutica, o ciclo do contato é bússola e espelho. O terapeuta não busca “diagnosticar doenças”, mas reconhecer onde e como o ciclo se interrompe.
O prognóstico, em Gestalt-terapia, não é uma previsão congelada, mas uma leitura de possibilidade. Ao entender onde o ciclo se rompe e onde ele ainda flui, o terapeuta pode estimar: Qual fase precisa de suporte terapêutico mais firme? Quais polaridades precisam ser integradas? Quais experimentações podem reabrir o fluxo bloqueado?
A evolução do cliente é percebida não por ausência de sintomas, mas pela: a capacidade de sustentar awareness sem desorganizar; a coragem de agir no mundo e não apenas reagir; a leveza da retirada após contato genuíno; o retorno da criatividade, do desejo, da capacidade de escolha.
Na Gestalt-terapia, o contato é a base do viver — é o processo pelo qual o organismo se encontra com o ambiente, experimenta, age, transforma e se transforma. Esse contato acontece por meio de três sistemas fundamentais e interdependentes do nosso organismo: o sistema sensório-afetivo, o sistema motor e o sistema cognitivo (Ribeiro, 2007; 2021). Juntos, eles formam a espinha dorsal do que chamamos de contato pleno — a experiência integrada e vital de estar presente no mundo.
O sistema sensório-afetivo é responsável por nos colocar em contato com o aqui-agora, através da awareness sensorial e emocional. Através dos sentidos — visão, audição, tato, paladar e olfato — somos tocados pelo mundo. E é nesse toque que a percepção emocional se organiza.
É a partir dele que distinguimos o que é nutritivo, tóxico ou indiferente, com base nas necessidades dominantes do campo organismo/ambiente.
Esse sistema é o solo fértil sobre o qual se formam as gestalten: primeiro sentimos, depois organizamos o que sentimos. Ele é essencial para que a pessoa se engaje de forma autêntica com a experiência presente. Sem ele, há cegueira existencial, insensibilidade, ou sensação de estar “fora de si”.
Disfunções: insensibilidade, anestesia emocional, hiperatividade sensorial sem discriminação, dificuldade de estar presente.
O sistema motor é responsável por mobilizar energia, agir sobre o mundo e promover ajustamentos criativos. Ele expressa a emoção sentida no corpo através da ação — seja pela fala, pelos movimentos, pelo toque ou pela postura.
Se o sistema sensório-afetivo nos coloca em contato com o que é, o sistema motor nos leva ao mundo com aquilo que somos.
Aqui, a emoção se transforma em ação significativa. É o campo do engajamento, da agressividade saudável (como força para se posicionar), da criatividade e da presença ativa.
Disfunções: impulsividade, paralisia, retraimento excessivo, dificuldade de agir, desengajamento da vida.
O sistema cognitivo permite que a experiência vivida seja integrada, assimilada e significada. Ele atua no fechamento das gestalten, na dissolução da experiência, na compreensão reflexiva do vivido e na capacidade de se posicionar existencialmente diante disso.
É o sistema do desinvestimento energético da figura já realizada, permitindo o retorno ao fundo e a abertura ao vazio fértil – espaço de silêncio, de preparação para o novo.
É por meio desse sistema que damos sentido ao que vivemos, que podemos nos distanciar criticamente, elaborar perdas, encerrar ciclos e reconfigurar o self.
Disfunções: ruminância mental, racionalização excessiva, intelectualização sem afeto, incapacidade de fechar ciclos (gestalten abertas).
Quando os três sistemas — sensório-afetivo, motor e cognitivo — atuam de forma integrada, há o que a Gestalt-terapia chama de consciência emocionada (Ribeiro, 2007). Nela, o sentir, o agir e o pensar não competem entre si, mas se nutrem mutuamente, permitindo um engajamento pleno com o campo presente.
É esse contato pleno que viabiliza a mudança real: espontânea, criativa, orgânica e autorreguladora. Não se trata de forçar a mudança — ela emerge como consequência natural do encontro verdadeiro com o outro, com o mundo e consigo mesmo.
Quando um ou mais desses sistemas funciona isoladamente ou está bloqueado, o contato se torna parcial, truncado ou inexistente. Isso pode gerar: Sensação de vazio ou confusão (sensório-afetivo dissociado); Incapacidade de agir ou se posicionar (motor dissociado); Prisão em reflexões improdutivas ou ideais rígidos (cognitivo dissociado).
A disfunção em qualquer um dos sistemas compromete o processo de autorregulação, impedindo o fechamento de gestalt, o ajustamento criativo e, portanto, a transformação.
“Quando um contato pleno ocorre, os elementos anteriores componentes do contato se modificam, porque absorvem processos de outra realidade” (Ribeiro, 2021, p. 21).
O contato pleno é, por definição, transformador. Ele reorganiza o campo, atualiza o self, abre espaço para novas figuras, dissolvendo padrões cristalizados. Não é uma meta idealizada, mas um movimento dinâmico de estar com o mundo, na exata medida do possível.
A doença, na perspectiva gestáltica, não é um erro do organismo — é um congelamento da possibilidade de contato pleno. Um sistema que se fecha em si mesmo, repete padrões, evita o encontro com o novo.
A neurose pode ser entendida como um contato repetitivo, defensivo e desatualizado com o mundo — uma forma de preservar o self ao custo de sua vitalidade.
Quando a pessoa fixa seu funcionamento em um único sistema (ex: só pensa e não age, ou só age sem perceber), ela perde sua plasticidade de resposta, e com isso, sua liberdade.
Viver é circular.
O ser humano — como o universo — não caminha em linha reta, mas em espirais de sentido. A cada volta, somos os mesmos e também outros. O ciclo do contato expressa esse movimento vital: é o modo como crescemos, nos transformamos e nos reconhecemos em meio à impermanência. Cada ciclo começa com uma necessidade, uma força que nos atravessa, um excitamento que pede forma. A figura emerge, nos chama. E ao seguirmos esse chamado — sentindo, nomeando, mobilizando, agindo, interagindo — nos tornamos.
“Contato é o motor da vida. Sem ele, tudo adoece. Com ele, tudo se refaz.” (Ribeiro, 2007)
Os ciclos existenciais revelam que funcionamos a partir de necessidades que emergem como figura e reorganizam o campo. Ao sermos tocados por algo — dentro ou fora de nós — entramos em movimento. Essa movimentação envolve presença sensorial, consciência reflexiva, engajamento ativo, contato com o mundo, satisfação e retirada. E quando o ciclo se fecha, há transformação. Algo se reintegra. Algo é assimilado. Algo se reequilibra.
Não há início sem fim. Não há fim que não leve a um novo começo. Cada ciclo carrega os frutos do anterior, e oferece ao seguinte um terreno mais fértil. Assim, crescemos — não em saltos bruscos, mas em acúmulos sensíveis.
Na medida em que cada experiência é vivida, sentida e encerrada, ela se torna estrutura viva, que sustenta e orienta o próximo passo.
“O tempo vivido é circular. Vai para frente, mas sempre retorna ao ponto de partida — transformado.” (Ribeiro, 2005)
Somos, portanto, seres em autoconstrução permanente, organizando-nos em torno daquilo que nos move. Nosso “eu” não é uma essência estática, mas um centro em fluxo, atravessado por ciclos que nos constituem, nos desconstroem, nos renovam.
O ciclo do contato é a forma como a vida nos atravessa e se organiza em nós. Cada etapa — da fluidez inicial à retirada final — é uma forma do self se expressar no campo. Quando o ciclo se completa, há saúde, integração, presença. Quando se interrompe — por medo, defesas, rigidez — há adoecimento, alienação, repetição estéril.
“Contato é saúde em movimento. Sem contato, não há criação. Sem criação, a vida se apaga.” (Ribeiro, 2021)
Cada gesto de contato carrega consigo toda a totalidade do ciclo. Em cada ponto, o todo vibra. E mesmo o bloqueio, quando escutado com presença, aponta para o lugar onde o fluxo pede passagem. É por isso que o ciclo também é um mapa clínico: revela onde a energia do cliente está presa — e para onde ela ainda pode fluir.
Funcionamos como o universo: em ciclos interdependentes, em campos que se retroalimentam. A cada volta, algo em nós morre e algo em nós nasce. E nessa repetição sempre diferente, vamos nos singularizando.
“Tudo muda. Tudo afeta tudo. Tudo é um.” (Ribeiro, 2021)
Nossa história não é uma linha — é um tecido de ciclos: ciclos de gestação e abandono, de conquista e perda, de solidão e encontro, de silêncio e fala. E cada ciclo bem vivido nos devolve um pedaço de nós mesmos.
O ciclo do contato é mais que uma ferramenta clínica. É um modelo de existência. Uma forma de compreender que cada figura que emerge é um convite à presença, ao enfrentamento, à expressão, à satisfação e à retirada consciente.
E que, ao permitir que o ciclo se complete, damos passagem para o novo — sem romper com o passado, mas transformando-o.
“Somos os contatos que fizemos — e continuamos fazendo. Somos o ciclo que gira dentro de nós.” (Ribeiro, 2007)