Em Nova Iorque, Fritz Perls retomou o contato com Karen Horney, figura central da psicanálise neofreudiana, conhecida por sua crítica contundente à ortodoxia freudiana. Horney questionava conceitos como a inveja do pênis e a universalidade do complexo de Édipo, denunciando sua base misógina e sua fragilidade sociológica. Embora enraizada na psicanálise, suas ideias mais tarde revelariam profunda afinidade com os fundamentos da Gestalt-terapia.
Horney acreditava que os indivíduos não estavam condenados à repetição do passado nem aprisionados por impulsos biológicos. Propunha que, por meio de escolhas autênticas e alinhadas a valores genuínos, era possível transcender estruturas neuróticas e reencontrar o próprio “centro de gravidade”. Para ela, o desenvolvimento da personalidade dependia diretamente das condições socioculturais: sentir-se amado, aceito e protegido era essencial para liberar o potencial de autorregulação e crescimento. Indicava ainda que a neurose nascia, muitas vezes, de vínculos infantis marcados por exigências idealizadas, nos quais a criança, sentindo-se inadequada, internalizava um sentimento crônico de culpa por não corresponder às expectativas do ambiente.
A autorregulação é o processo pelo qual o organismo busca, de forma espontânea e contínua, o equilíbrio entre suas necessidades internas e as demandas do ambiente. Trata-se de um movimento dinâmico, no qual o indivíduo identifica o que lhe falta, mobiliza recursos para atender essa necessidade e, uma vez satisfeita, retorna ao estado de equilíbrio. Esse fluxo é natural e criativo, permitindo ajustes constantes frente às mudanças do campo pessoa-mundo.
A autorregulação saudável pressupõe contato pleno com a própria experiência: perceber o corpo, reconhecer emoções, aceitar pensamentos e intuições como sinais que orientam a ação. Quando o ambiente é suficientemente seguro e acolhedor, o indivíduo aprende a confiar nesse processo, respondendo de modo flexível às situações. Porém, experiências traumáticas, repressão de sentimentos ou campos opressores podem interromper esse ciclo, levando a padrões rígidos ou repetitivos de comportamento. Nesse caso, a pessoa se afasta de suas necessidades reais e passa a agir por condicionamentos, expectativas externas ou defesas antigas. O trabalho terapêutico busca restaurar a confiança na autorregulação, favorecendo a consciência (awareness) e o contato genuíno.
Um dos aportes mais revolucionários de Horney foi a valorização das emoções do terapeuta como instrumento clínico. Para Horney, os sentimentos do psicoterapeuta funcionavam como bússolas, guiando intervenções mais sensíveis e ajustadas às necessidades do paciente — uma antecipação notável das práticas centradas na empatia e na presença genuína. Não por acaso, a convivência com Horney reforçou em Fritz o valor do contato humano profundo, para além das teorias.
Na perspectiva gestáltica, esse contato só se realiza plenamente quando terapeuta e paciente se encontram no aqui-agora, permitindo que a sessão se torne um espaço vivo, onde emoções, gestos e silêncios possam ser notados e explorados no momento em que emergem. A presença genuína do terapeuta, enraizada em sua própria awareness, cria um campo relacional que favorece a abertura e a autenticidade do paciente. Nesse espaço, o que é dito deixa de ser apenas relato sobre o passado e se transforma em experiência compartilhada, capaz de mobilizar insights e mudanças concretas. O terapeuta, ao sustentar essa presença e responder com sensibilidade ao que se apresenta, oferece não apenas compreensão intelectual, mas também a vivência transformadora de ser visto, sentido e acolhido na própria existência.
Na efervescente Nova Iorque do pós-guerra, Horney liderava um grupo de psicanalistas neofreudianos, junto a nomes como Erich Fromm e Harry Sullivan. A cidade, repleta de imigrantes europeus que escapavam do nazismo, tornou-se um centro de renovação teórica. Esses exilados, impregnados por experiências de ruptura, desafiaram os fundamentos da psicanálise tradicional — questionando a primazia das pulsões, a ênfase na repressão e a própria estrutura da transferência. Com a morte de Freud, em 1939, emergiu uma vontade coletiva de expandir seu legado, num movimento que muitos identificam como o prenúncio de uma “terceira tópica”. Esse período, o neofreudismo, marcou a quebra do dogmatismo psicanalítico e a abertura para novas perspectivas.
Fritz e Laura mergulharam nesse caldeirão de ideias, especialmente nas discussões sobre o conflito entre forças ambientais e desenvolvimento pessoal — um ponto de tensão dentro da própria psicanálise. Foi nesse contexto que Fritz apresentou, no Instituto Psicanalítico Alanson White, sua palestra Planned Psychotherapy, onde já não propunha apenas uma análise, mas uma terapia da integração. E integração, para ele, não era mero conceito: era um chamado existencial. Significava resgatar o que fora alienado por medo, vergonha ou necessidade de aceitação.
Na palestra, Fritz apontou que pacientes tendem a se identificar com aspectos como a necessidade de agradar, alienando seus opostos, como a capacidade de desagradar. Essa cisão interna cria dicotomias rígidas, um campo de batalha invisível onde a espontaneidade se esvai. O resultado é um funcionamento empobrecido, estereotipado, repetitivo. Como ele próprio afirmou, integração requer identificação com todas as funções vitais — e cada resistência transformada em assistência liberta tanto o prisioneiro quanto o carcereiro.
Alienar, para Fritz, é esquecer-se de si mesmo. É silenciar partes legítimas da experiência em nome da sobrevivência social, da aceitação ou da conveniência. É deserdar afetos, percepções e desejos, empurrando-os para o inconsciente ou para os músculos tensos e silêncios calculados. Esse movimento, embora inicialmente protetivo, cobra seu preço: compromete a qualidade do contato, enfraquece a presença e fragmenta o ser.
Planned Psychotherapy propõe que a neurose não deve ser compreendida apenas como eco do passado, mas como expressão de uma dialética vital interrompida — entre figura e fundo, organismo e ambiente, necessidade e ação. Quando essa dança se rompe, o processo fica suspenso, restando apenas fragmentos desconectados. O sofrimento neurótico é, então, o congelamento de um jogo de opostos que deveria ser fluido e criativo.
Fritz visava restaurar ao ego sua função integradora, capaz de discernir e escolher entre os opostos com base nas exigências do presente. Cada aspecto dissociado era visto como um exilado pedindo retorno. A psicoterapia, nesse sentido, ampliava as possibilidades existenciais, convidando o cliente a experimentar formas de ser antes interditadas. A integração devolve ao passado sua função narrativa, sem que ele dite o futuro. Para cada “isso” que vira “eu”, a vitalidade cresce.
Fritz não pretendia consolar ou interpretar, mas despertar. A integração não era paz — era verdade. E a verdade, dizia ele, nasce do conflito. Integrar é também resistir: é se recusar a seguir vivendo fragmentado apenas para caber no mundo. Nesse processo, o terapeuta é aquele que acolhe o que foi banido, restaura a vitalidade e permite o encontro entre aspectos antes em guerra.
A proposta da Gestalt-terapia pode ser resumida como um processo de reintegração contínua, que liberta potencialidades negligenciadas e reconecta o sujeito à espontaneidade e à autonomia. Nesse horizonte, o conceito de indiferença criativa — o “ponto zero” de Friedlaender — torna-se essencial. Nele, sustenta-se a tensão entre opostos antes da escolha. É o lugar onde o novo pode emergir, descolado das velhas defesas. A terapia, então, torna-se um convite a sair das respostas automatizadas e escutar esse silêncio fértil, permitindo que o inédito surja — não como repetição, mas como nascimento, como escolha contextualizada.
Ser vazio, nesse contexto, não é carência: é liberdade de estar desprogramado. É recusar o velho que já não serve e sustentar o desconforto de crescer. Apenas quem suporta o chão de si pode escolher com autenticidade. Para Friedlaender, estar no ponto zero é ver o todo e abrir-se às suas possibilidades. É aí que se dá o verdadeiro encontro com a liberdade.
Fritz defendia que a tarefa do terapeuta é facilitar esse movimento de integração. O tratamento bem-sucedido não significa alcançar perfeição, mas atingir um nível de inteireza suficiente para permitir o crescimento. Com a metáfora do “buraco na neve”, ele ilustra: basta um pequeno início para que a transformação aconteça por si. Mas é preciso mais que consciência: é necessário integração. Quando a resistência se torna assistência, o processo de mudança já está em curso.
A psicoterapia, assim, é um fluxo vital rumo à expansão do ser. Trata-se de um processo como um movimento de dentro-fora-dentro, rumo à unidade física, psíquica, social e espiritual. Essa convicção acompanhou Fritz até o fim. Até o ano de sua morte ele declarou que somos pessoas fraturadas e que a Gestalt-terapia existe para reunir os pedaços.
Apesar do impacto teórico de sua proposta, a palestra de Fritz não foi bem acolhida pelos neofreudianos. Seu estilo provocador e suas ideias disruptivas não encontraram eco. No entanto, essa recusa se tornou fértil: impulsionou a ruptura definitiva com a psicanálise e levou à formação do grupo fundador da Gestalt-terapia — iniciativa articulada por Laura, que reuniu o que chamava de sua “coleção de gênios”.
Fritz se ausentou inicialmente, viajando à Califórnia, onde recebeu o título de “Doutor Honorário”. Ao retornar, assumiu a liderança do grupo, composto por estudiosos de diversas áreas, como Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz, Sylvester Eastman, Shapiro e Richard Kitzler. Goodman, anarquista e paciente de Laura, trouxe críticas sociais e políticas à abordagem. From, primeiro paciente de Fritz em Nova Iorque, foi essencial na formação da primeira geração de gestalt-terapeutas. Weisz, zen-budista, integrou conceitos orientais. Shapiro destacou-se por sua atuação na educação pública.
Dessas reuniões nasceu a obra Gestalt Therapy, publicada em 1951 — marco inaugural da abordagem. Dividida em duas partes, a primeira trazia exercícios clínicos elaborados por Fritz, aplicados por Hefferline e Shapiro em aulas nas universidades Columbia e Brooklyn. A segunda parte, organizada por Goodman, moldou a espinha dorsal teórica da Gestalt-terapia com uma sensibilidade política notável.
Nessa obra, os autores apresentaram uma concepção orgânica da decisão humana. Se o existencialismo destaca a responsabilidade da escolha, a Gestalt-terapia propõe um equilíbrio: o indivíduo saudável alterna deliberação e entrega, sendo consciente e espontâneo. A espontaneidade é descrita como um processo criativo, imparcial, engajado com o presente e em constante descoberta. Segundo Perls (1977):
Todo controle externo, mesmo o controle externo interiorizado – “você deve” – interfere no funcionamento sai do organismo. Existe uma única coisa que deve controlar: a situação. Se você compreender a situação em que se encontra, e deixá-la controlar suas ações, então aprenderá a lidar com a vida. Você fica sabendo disto a partir de certas situações, como guiar um carro. Você não guia um carro de acordo com uma programação do tipo “Eu quero guiar a sessenta e cinco km por hora”. Você guiar de acordo com a situação. Você guia a uma certa velocidade de noite, guia a outra velocidade quando há trânsito, guia diferente quando está cansado. Você obedece a situação ( p. 38).
A clínica, portanto, não busca formar sujeitos antissociais, mas restaurar a integridade: alinhar ações às prioridades da situação, libertando o indivíduo da rigidez das normas internalizadas. Fritz observou que os chamados “problemas” – como timidez, egoísmo ou impulsividade – não são, por si, patológicos. Tornam-se adoecedores quando isolados de seus opostos, fixados compulsivamente. O sofrimento, então, não reside na polaridade, mas na ausência da alternância viva entre os extremos.
Integrar é completar o que foi fragmentado. Não se elimina o traço dominante, mas se convida seu contraponto a entrar. O terapeuta sustenta esse paradoxo e constrói o campo para o reencontro entre os opostos. Estar centrado é estar disponível, não enrijecido. É acessar o ponto zero e, a partir dele, fluir com liberdade.
Os autores da obra destacaram dez pares fundamentais de polaridades neuróticas a serem integradas, como corpo-mente, subjetivo-objetivo, amor-agressão, consciente-inconsciente. Ao reintegrar essas forças, o self pode emergir como um fenômeno vivo, criativo, transformador. Embora a obra tenha tido recepção tímida inicialmente, tornou-se, com o tempo, o alicerce de uma abordagem que ainda hoje pulsa — viva, crítica, criadora.