Enquanto disciplina dedicada ao estudo dos fenômenos, a Fenomenologia não se ocupa de conceitos abstratos sobre as coisas, mas daquilo que aparece à consciência: o objeto-sendo-percebido, tal como se revela à experiência (Rehfeld, 2013). Um de seus pontos centrais é a crítica à atitude natural, isto é, ao modo automático e irrefletido de tomarmos o mundo como dado universal, sem questionar os sentidos que atribuímos a ele (Cerbone, 2014). Para Husserl, a percepção não é estática: é moldada tanto pela subjetividade de quem apreende quanto pelo contexto da apreensão (Cardoso, 2018). Cada vivência, a partir de suas prioridades, organiza a realidade de um modo singular, fazendo emergir elementos que podem não se destacar para outra pessoa. Assim, a Fenomenologia rompe com visões essencialistas, ressaltando que a percepção nunca é espelho neutro da realidade, mas processo ativo de construção de sentido (Ribeiro, 1985; Ribeiro, 1999; Sá, 2006; Ribeiro, 2011; Holanda, 2014).

Essa mesma perspectiva encontra ressonância na Psicologia da Gestalt, desenvolvida por Max Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka. Suas pesquisas mostraram que a percepção humana é guiada por uma tendência natural a integrar elementos dispersos em padrões coerentes. Entre seus princípios, destaca-se a pregnância, segundo a qual tendemos a organizar os estímulos da forma mais simples e harmoniosa possível, conforme as condições disponíveis (Perls; Hefferline; Goodman, 1997; Joyce; Sills, 2016). É por isso que enxergamos formas nas nuvens ou ligamos pontos isolados em figuras reconhecíveis.

Para os gestaltistas, o ser humano não percebe a realidade como uma soma de partes, mas como totalidades dotadas de sentido. O termo gestalt expressa justamente essa estrutura irreduzível que emerge na percepção (Bock; Teixeira; Furtado, 1999). Nesse processo, um elemento se destaca como figura no campo da consciência, enquanto os demais permanecem em segundo plano, compondo o fundo. A relação figura-fundo é dinâmica: o que atrai a atenção ganha contorno e significado a partir do fundo em que se insere. Como apontaram Polster e Polster (2001), o fundo, ainda que aparentemente secundário, é indispensável, pois é nele que os significados se constroem. Um mesmo tom de cor, como observou Perls (2002), pode parecer distinto conforme o fundo sobre o qual se projeta, assim como uma palavra pode adquirir sentidos diversos dependendo do contexto. O significado, portanto, não é fixo, mas nasce da relação entre figura e fundo.

Essa visão mostra que a percepção não é passiva nem mecânica, mas construção ativa da experiência sensorial, na qual organizamos os estímulos em padrões significativos (Belmino, 2021). Não apreendemos figuras de modo neutro e objetivo, mas subjetivo e singular, pois interpretamos a partir de nossa história, emoções e contexto (Bock; Teixeira; Furtado, 1999). Dois indivíduos podem compartilhar uma mesma situação e, no entanto, vivê-la de formas radicalmente distintas: um olhar desviado pode ser interpretado por alguém como gesto de indiferença dolorosa e, por outro, como distração trivial. Assim, o comportamento humano não é efeito direto de uma realidade objetiva, mas do modo como a compreendemos subjetivamente.

Dessa forma, a Fenomenologia nos ensina que aquilo que emerge à consciência não são objetos em si nem conceitos universais, mas experiências vivas moldadas pela relação entre quem percebe e o que é percebido. A Psicologia da Gestalt amplia essa compreensão ao mostrar que o significado das vivências não depende apenas da recepção dos estímulos, mas da forma como os organizamos em nosso campo experiencial. Essa organização subjetiva orienta a maneira como respondemos ao mundo.

Na prática clínica, essa perspectiva exige uma mudança essencial na escuta. Em vez de reduzir a experiência do cliente a categorias diagnósticas ou modelos preestabelecidos, voltamo-nos para a singularidade de seu vivido. Uma terapia orientada pela ampliação da awareness se ancora no presente, favorecendo o contato mais pleno do cliente consigo mesmo. Se alguém afirma estar estressado, não tomamos isso como um dado universal, mas exploramos como esse estresse se manifesta para ele: em seu corpo, em sua rotina, em seus relacionamentos. Perguntamos não “por que você está assim?”, mas “como esse estresse se mostra agora?”.

Na fenomenologia, a experiência é sempre situada: não há “o” estresse, mas “esse” estresse, vivido por “essa” pessoa, em “tal” contexto. Isso nos lembra que qualquer fenômeno humano precisa ser compreendido no entrelaçamento entre fatores internos e externos. Assim, o estresse não é estado isolado nem reflexo passivo do ambiente, mas algo que emerge na relação do sujeito com o seu mundo. Quando investigamos essa experiência, o cliente descobre dimensões antes invisíveis: expectativas próprias ou alheias, medo do fracasso, desejo de reconhecimento. A partir daí, seu sofrimento ganha contornos, sentido e possibilidade de transformação.

Esse olhar clínico também convida a uma postura crítica em relação ao diagnóstico. Embora possa ser útil em certos contextos, ele não deve substituir a singularidade do cliente. Rotular alguém como “ansioso generalizado” ou “depressivo” corre o risco de aprisionar a complexidade de sua vivência. O gestalt-terapeuta, ao contrário, busca o retorno “às coisas mesmas”, no sentido husserliano, convidando o cliente a descrever sua experiência em suas próprias palavras, tal como a sente e vive.

Uma psicoterapia voltada à awareness exige, assim, presença atenta e disponibilidade para o inesperado. A cada sessão, novas figuras emergem: a ansiedade diante das exigências do trabalho, a solidão em uma relação, a dificuldade em permitir-se prazer. Cada tema não é apenas um problema isolado, mas uma expressão holográfica de como o cliente organiza seu campo. Nada que surge é aleatório: o tom de voz, o gesto, o silêncio, a emoção que transborda — tudo revela como ele se relaciona com o mundo naquele instante.

Considere, por exemplo, a jovem que, ao ser convidada a escolher entre seis sabores de café, congelou diante da multiplicidade de opções. Um detalhe trivial revelou um fenômeno profundo: a dificuldade de escolher. Essa pequena cena se tornou metáfora poderosa de seu dilema maior — decidir entre permanecer ou sair de um relacionamento. O processo terapêutico, então, não foi indicar o caminho “certo”, mas ajudá-la a assumir a responsabilidade pela escolha, aprendendo a sustentar a incerteza e a confiar em seu discernimento.

Esse exemplo ilustra que, na Gestalt-terapia, não fragmentamos a experiência em partes isoladas, mas buscamos compreendê-la como totalidade. Um sintoma, como a impotência sexual, pode estar enredado em contextos de impotência mais amplos — no trabalho, nas relações, na autoestima. O campo não é somatório de fatores, mas totalidade dinâmica em fluxo. Cada figura que emerge é porta de entrada para compreender como o cliente organiza sua vida e quais forças estão em jogo.

A transformação, nesse contexto, não resulta de imposições externas, mas do movimento orgânico que nasce quando o cliente expande sua awareness e passa a nomear e habitar sua experiência de forma mais consciente. Assim, o ato terapêutico não é moldar nem corrigir, mas sustentar um espaço em que o cliente possa reconhecer conexões invisíveis, reintegrar partes fragmentadas e abrir-se a novas possibilidades de ser.

A fenomenologia-existencial, no contexto da Gestalt-terapia, constitui um alicerce essencial para compreender a relação entre indivíduo e ambiente e o modo como o ser humano percebe e atribui significados à totalidade que o envolve. Heidegger, ao introduzir a noção de “ser-no-mundo”, retira o homem da posição de mero observador e o coloca como participante ativo, cujas experiências e relações estão intrinsecamente entrelaçadas ao mundo que habita. Essa concepção encontra forte ressonância nos princípios gestálticos, que destacam a percepção do todo e a inseparabilidade do organismo em relação ao ambiente.

Para Heidegger, o ser humano ocupa uma posição singular: não é totalmente determinado pelo contexto que o cerca, mas tampouco dele independente (Ribeiro, 2011). Está imerso em um campo vivo de referências compartilhadas, no qual é continuamente moldado e desafiado. O peso das coisas ao redor não constitui apenas cenário, mas parte integrante da existência: envolve, sustenta, nutre e também impõe dificuldades (Sá, 2006). Nesse horizonte, a facticidade assume relevância central. Ela designa as condições já dadas — sociais, históricas, culturais, econômicas, físicas e temporais — que influenciam a experiência humana, como o lugar de nascimento ou a inevitabilidade da morte. Essas condições, embora estruturantes, não nos aprisionam; antes, convocam-nos a participar ativamente, questionando, assumindo ou transformando possibilidades, redesenhando assim o modo como existimos no mundo (Cardoso, 2013).

A existência, portanto, é de coparticipação. O ser humano está sempre em diálogo com outros e com o ambiente, num campo que não é fixo, mas dinâmico, repleto de possibilidades que pedem escolhas conscientes e engajamento. Nesse processo, desenvolvemos sensibilidade ao que está além de nós, respondendo à temporalidade que nos atravessa e construindo continuamente quem somos.

Diferente dos outros seres, que simplesmente “são”, o humano pode responder de modos variados às demandas do mundo, ajustando-se e transformando-se criativamente. Esse dinamismo o torna singular, sempre aberto ao sentido e à autenticidade.

Heidegger ainda sustenta que o ser humano se distingue por três características fundamentais. A primeira é a compreensão, ou seja, a capacidade de atribuir significados a si, aos outros e ao mundo, refletindo criticamente sobre a própria existência e mortalidade. A segunda é o discurso, a habilidade de estruturar e compartilhar a realidade por meio da linguagem. A terceira é o cuidado, que expressa a relação fundamental consigo mesmo e com o mundo, permitindo ao indivíduo projetar-se, transformar-se e assumir-se como ser inacabado (Ribeiro, 1985).

Sartre, em consonância, vê o ser humano como um ser aberto e relacional (Póvoas, 2005), cuja existência se faz nas escolhas e nas trocas dinâmicas com o contexto sócio-histórico. A individualidade resulta tanto da internalização de normas e valores coletivos quanto da capacidade de refletir criticamente sobre eles, possibilitando ao sujeito ser, ao mesmo tempo, produto e produtor da sociedade (Júnior et al., 2016).

No pensamento sartriano, a liberdade é central, mas não absoluta: é uma liberdade situada, vivida em meio à interdependência. Surge aí a dimensão do “para-outro”, onde a consciência se reconhece e se define na interação com os demais. Nesse espaço, a liberdade se manifesta como negociação constante diante das expectativas e julgamentos alheios, que podem sustentar ou oprimir (Póvoas, 2005). O “para-si” — reflexão interna — e o “para-outro” — dimensão relacional — coexistem em tensão criativa, desafiando o indivíduo a equilibrar autenticidade e limites sociais (Pereira; Mello; Bervique, 2014). Assim, existir é também um compromisso ético: nossas ações reverberam no mundo, influenciam outros e retornam a nós (Júnior et al., 2016). A liberdade é compartilhada, e cada escolha tem impacto coletivo (Holanda, 2014).

O outro, portanto, não é mero observador, mas presença ativa que nos convoca a responder por nossos atos. Seu olhar nos confronta e provoca, exigindo autenticidade sem abdicar da responsabilidade social. É nesse equilíbrio, entre liberdade pessoal e demandas coletivas, que se desenrola a dinâmica existencial (Póvoas, 2005).

Quando integradas à Gestalt-terapia, as contribuições de Heidegger e Sartre expandem o sentido do espaço terapêutico como encontro relacional. O cliente é chamado a reconhecer suas escolhas, explorar o campo que o circunda e assumir sua liberdade situada. A clínica, assim, não se reduz à compreensão do passado, mas se torna um lugar vivo de presença, onde limitações sociais, culturais ou pessoais podem ser transformadas em possibilidades de crescimento.

Nesse horizonte, a awareness ocupa posição central. Inspirada pelo existencialismo, a Gestalt-terapia convida o cliente a assumir responsabilidade ativa, percebendo que, mesmo em condições delimitadas, há sempre espaço para ressignificar experiências e abrir novas possibilidades. O vazio existencial, que tantas vezes aparece como angústia ou incerteza, revela-se então como solo fértil, no qual criatividade e responsabilidade podem florescer e dar novos contornos à existência.