No intuito de estabelecer um fundamento sólido para o fazer científico, Husserl destacou a necessidade de identificar as essências ou estruturas universais da experiência. Esse esforço visava superar as limitações de uma percepção exclusivamente subjetiva e particular, buscando uma base de compreensão compartilhada entre as pessoas. Nesse contexto, Husserl propôs um método eidético, orientado para o alcance do Lebenswelt (traduzido como “mundo da vida”) – o campo primordial, imediato e pré-reflexivo no qual a consciência se dirige intencionalmente e do qual emergem todas as nossas experiências e significados como um devir contínuo. Portanto, o Lebenswelt se trata do campo no qual as experiências acontecem antes de serem interpretadas ou mediadas por conceitos científicos, tornando-o um ponto de partida essencial para a Fenomenologia (Cerbone, 2014). A Fenomenologia, assim, se apresenta como um “método eidético” e uma “filosofia transcendental”. É denominada método eidético porque se volta para a essência constitutiva dos fenômenos (Holanda, 2014). O termo “eidético” deriva da palavra grega “eídēsis”, que significa “aparição”. Portanto, o método busca acessar os elementos essenciais das experiências tal como elas aparecem à consciência, desvelando suas características universais. Ao mesmo tempo, a Fenomenologia é uma filosofia transcendental por transcender a subjetividade individual, voltando-se para a essência universal do fenômeno. Ao permitir que o irrefletido se manifeste, a atitude fenomenológica nos ajuda a redescobrir a experiência em sua pureza, livre de conceitos preestabelecidos. Essa abordagem permite identificar o que é comum entre diferentes sujeitos e estabelece um ponto de partida para um entendimento intersubjetivo – um saber que não é privado a uma única pessoa, mas pode ser confirmado, partilhado e compreendido por outras, criando uma conexão mundana e real entre elas (Cerbone, 2014). Por meio dessa perspectiva, Husserl se afastou do subjetivismo, que privilegia interpretações individuais e pode levar à ideia de que uma afirmação poderia ser verdadeira para uma pessoa, mas falsa para outra. Afinal, essa posição equivaleria a um retorno ao pensamento de Protágoras, segundo o qual “o homem é a medida de todas as coisas” – o qual, por sua vez, poderia acarretar julgamentos enviesados e relativistas. Para Husserl, tal relativismo comprometeria a aspiração da ciência de ser um patrimônio humano coletivo, que estabelece saberes intersubjetivas (Holanda, 2014). Assim, a filosofia transcendental de Husserl procura reconciliar a subjetividade da experiência com a objetividade da ciência, proporcionando um conhecimento confiável.

Holanda (2014) explica que:

A Fenomenologia propõe que o significado, o sentido, aquilo que habita a palavra, não é o pensamento, é anterior a este. A isto Husserl denomina de “experiência pré-reflexiva”; a isto Merleau-Ponty chama de “intenção primordial”. É sobre este solo filosófico que a maioria das práticas psicoterápicas – ditas humanistas, fenomenológico-existenciais ou simplesmente existenciais – se apoia quando constituem sua práxis num desvelar de sentidos, numa busca de significados anteriores às falas, num conjunto de métodos e técnicas com vistas a permitir ao cliente retornar à sua experiência vivida. É nisto que se constitui a possibilidade de compreendermos o “retorno às coisas-mesmas” da Fenomenologia. […] Quando a Gestalt-Terapia fala de awareness, por exemplo e a define com ao experiência de estar em contato com a própria existência ou, como assinala Ribeiro (1993), como a experiência de estar consciente da própria consciência, está-se assinalando este “retorno” a uma experiência que a Fenomenologia descreve como sendo pré-pedicativa (p. 101).

Para alcançar o desvelamento genuíno dos fenômenos, Husserl desenvolveu uma metodologia que permitisse uma investigação rigorosa. Ele observou que os fenômenos, de início, encontram-se “encobertos” por nossas crenças pessoais e culturais, bem como pelos achismos que carregamos. Para superar essas limitações, propôs que rompêssemos com a atitude natural, adotando a atitude fenomenológica, que consiste em um “des-encobrir” do fenômeno. Essa nova postura busca um contato direto e não contaminado com o modo como os fenômenos se apresentam à consciência (Holanda, 2014). Segundo Ribeiro (2011), a Fenomenologia “não propõe a essência pronta das coisas ou de coisas, mas afirma que essa essência deve ser encontrada através da experiência vivida, aqui-agora” (p. 9). A atitude fenomenológica de Husserl compreende duas etapas fundamentais: a epoché e a redução fenomenológica (Holanda, 2014). A epoché consiste na suspensão ou colocação “entre parênteses” de todas as preconcepções, crenças, hipóteses e conceitos preestabelecidos que possam interferir na percepção (Ribeiro, 1985). Trata-se de um exercício “negativo”, que visa despojar a consciência de tudo aquilo que não é verificável pela experiência (Holanda, 2014). Essa suspensão permite o deslocamento de uma postura pretensiosa de “eu sei” para uma humilde posição de “eu ainda não sei”, criando abertura para uma observação mais fiel, menos contaminada e enviesada (Ribeiro, 1985). Por sua vez, a redução fenomenológica envolve a investigação ativa do fenômeno, examinando-o de forma ingênua, imparcial e perplexa – como se fosse observado pela primeira vez. Aqui, o objetivo é permitir que o objeto se revele em sua pureza, definindo-se pela forma como é diretamente experienciado pela consciência (Ribeiro, 2011). Esse é um exercício “positivo”, pois foca na vivência sensível e pré-reflexiva do fenômeno tal qual se apresenta (Ribeiro, 1999; Holanda, 2014).

Para Husserl, a atitude fenomenológica nos permite “voltar às coisas-mesmas” – ou seja, retornar àquilo que se mostra à consciência, captando os fenômenos de forma direta e descritiva. É importante ressaltar que as “coisas-mesmas” diferem das “coisas em-si” do positivismo ou do realismo tradicional. A Fenomenologia não busca objetos isolados da consciência, mas sim compreender como eles aparecem à consciência que os apreende (Sá, 2006). Husserl argumentava que a apreensão genuína de um fenômeno exige um retorno à novidade intrínseca da experiência imediata, algo que só poderia ser alcançado por meio da atitude fenomenológica (Holanda, 2014; Belmino, 2021; Marton, Júnior e Costa, 2021). Em contraste com a atitude natural, que suprime o irrefletido e impede sua manifestação em sua particularidade (Ribeiro, 2011), a atitude fenomenológica nos capacita a acessar e descrever detalhadamente esse irrefletido exatamente como ele se apresenta, focando nos elementos constitutivos da experiência (Holanda, 2014). Por exemplo, ao descrever uma caneta, a atitude fenomenológica levaria à observação de que é um objeto de plástico pontudo, destacando suas características físicas de forma descritiva, sem adicionar julgamentos ou interpretações subjetivas. Esse esforço nos conecta diretamente com a experiência vivida, desnudando o fenômeno em sua essência.

Como método eidético, a atitude fenomenológica desloca o foco da estrutura empírica da experiência – frequentemente influenciada por subjetividades no processo de coleta, interpretação e comunicação dos dados – para a identificação das estruturas essenciais subjacentes aos fenômenos (Cerbone, 2014). Embora o Empirismo também valorize a observação fundamentada na experiência sensorial, ele interpreta os conteúdos investigados como entidades independentes da percepção do observador, tratadas como um “em-si” passível de apreensão. Além disso, o Empirismo tende a generalizar os padrões observados, buscando formular leis universais. Em contraste, a Fenomenologia defende que compreender um fenômeno requer considerar a relação intrínseca entre observador e objeto, reconhecendo que a percepção é moldada pela intencionalidade da consciência. Essa perspectiva também a diferencia do Racionalismo, que privilegia a razão e a dedução lógica, sustentando uma separação entre observador e objeto e especulando sobre entidades universais abstratas e verdades inatas, dissociadas da experiência sensorial. A Fenomenologia, por outro lado, prioriza a experiência concreta, tratando observador e mundo como realidades interdependentes e evitando abstrações que extrapolem o que pode ser observado diretamente. O Positivismo, com sua ênfase na investigação através de experimentos controlados e sistemáticos, também busca estabelecer leis gerais que expliquem os fenômenos. A Fenomenologia, em oposição, questiona como essas metodologias podem limitar a compreensão das manifestações e propõe uma análise descritiva e rigorosa, centrada na singularidade e na imediaticidade das experiências. Assim, enquanto o Positivismo se orienta pela quantificação e generalização, a Fenomenologia valoriza a qualificação e a particularização, ressaltando o caráter único de cada fenômeno (Marcondes, 2010). Dessa maneira, a Fenomenologia oferece um contraponto significativo às abordagens epistemológicas anteriores, que frequentemente fragmentam, isolam e generalizam os fenômenos. Ao invés de partir de conhecimentos pré-estabelecidos ou conceitos abstratos, o método fenomenológico se ancora em um saber concreto, comprometido com o modo como os fenômenos se apresentam à consciência no fluxo contínuo da experiência. Diferente das ciências naturais, que priorizam explicações causais e objetivas, a Fenomenologia enfatiza a descrição detalhada da experiência consciente (Holanda, 2014). Cerbone (2014) ressalta que “a fenomenologia […] foca precisamente no que é dado na experiência, abstendo-se inteiramente do método de formular hipóteses e extrair inferências do que é dado para o que se encontra aquém ou além disso” (pp. 38 e 39). Desse modo, a Fenomenologia se posiciona como uma “disciplina pura”, comprometida com uma metodologia neutra que rejeita especulações desvinculadas da experiência vivida. Fiel aos dados da experiência, ela aceita apenas aquilo que se manifesta no âmbito do que é percebido, reafirmando sua postura rigorosa e despretensiosa de ultrapassar o limite da vivência (Ibid.). Imagine observar um quadro de um pôr do sol. Um empirista trataria a experiência sensorial como dados objetivos independentes da subjetividade e destacaria seus padrões. Um racionalista buscaria entender o conceito abstrato de pôr do sol e beleza que o quadro representa. Um positivista analisaria as cores, técnicas e materiais usados, quantificando os elementos. Já um fenomenológico perguntaria: “Como esse quadro aparece para mim? Qual a essência dessa experiência concreta? Que emoções ou significados ele desperta em mim?”. Assim, buscaria descrever a vivência imediata do observador sem a reduzir a números, abstrações, explicações causais ou generalizações. Há algo que se perde quando trocamos o mundo pela ideia dele — quando, no lugar de sentir o calor do sol, nos apegamos à palavra “sol”. E é contra essa anestesia do vivido que a Fenomenologia se levanta como uma insurreição da consciência desperta. O que a Fenomenologia revela não é um mundo de significados prontos, mas um campo vibrante onde significado e percepção brotam do encontro. Nesse sentido, mais do que uma teoria, a Fenomenologia é um gesto — um retorno. Retorno à experiência tal como ela é, nua, crua, sem os véus que a linguagem, a cultura e o hábito lançaram sobre ela. Não se trata de negar o pensamento, mas de suspender os juízos e reaprender a ver, como quem pela primeira vez abre os olhos para o mundo. Ele aponta que nos prendemos aos símbolos e perdemos o fenômeno, que vamos nos afastando da vivência imediata, substituindo a experiência viva por conceitos, rótulos, diagnósticos, explicações. Perdemos o frescor do olhar. A Fenomenologia é, então, um exercício de desaprendizagem, de limpeza do terreno perceptivo, para que possamos reencontrar aquilo que está presente, mas encoberto pelas camadas de hábito, cultura e defesa. Por isso, ela é também um exercício de desaprendizagem — de desapegar-se das certezas herdadas, dos diagnósticos rápidos, das palavras que sufocam o real. Ela propõe uma limpeza no terreno da percepção, permitindo ao fenômeno aparecer como ele é, não como aprendemos a chamá-lo. A palavra-chave se torna “desvelamento” — retirar os panos que cobrem o real. A experiência humana, para a Fenomenologia, é sempre uma abertura para o mundo, mas essa abertura pode ser estreitada, distorcida, encoberta. Ao desvelar o fenômeno, tocamos novamente aquilo que é originário, isto é, o modo como o mundo e o outro nos aparecem antes de serem reduzidos a categorias. Como uma escultura soterrada sob camadas de poeira, o vivido precisa ser desenterrado, escovado, redescoberto. Portanto, a Fenomenologia, em sua essência, é uma convocação radical a voltar à experiência tal como ela se dá, antes das interpretações, dos conceitos prontos, das teorias e dos julgamentos. Não se trata de rejeitar o pensamento ou a linguagem, mas de suspender os pressupostos, os automatismos do saber, para poder ver novamente o mundo e a si mesmo com olhos despertos — olhos de quem se surpreende, de quem se espanta.

Nesse sentido, a Fenomenologia aproxima-se do ceticismo pirrônico, uma tradição filosófica que remonta à antiguidade. O termo “ceticismo” deriva do grego skepsis, que significa “investigação” (Marcondes, 2010). O ceticismo pirrônico defende que não devemos nem afirmar, nem negar a verdade; que diante do conflito entre opiniões contraditórias e da impossibilidade de determinar com certeza qual delas é válida, devemos evitar convicções dogmáticas e adotar uma postura serena de investigação contínua. Embora Husserl não fosse um cético, ao comparar a Fenomenologia com o ceticismo pirrônico, encontramos uma afinidade fundamental: ambas rejeitam o dogmatismo e valorizam a abertura para a investigação da experiência. Não por acaso, o ceticismo pirrônico é frequentemente considerado uma das raízes do pensamento fenomenológico. No entanto, há também diferenças fundamentais entre as duas abordagens. Os céticos acreditam que as percepções e crenças estão sempre sujeitas a erros, adotando uma postura de dúvida sistemática que questiona a confiabilidade tanto das percepções sensoriais quanto das inferências racionais. Essa dúvida culmina em uma suspensão permanente do julgamento, sem qualquer pretensão de alcançar verdades definitivas. Para os céticos, a dúvida é um fim em si, uma prática que conduz à tranquilidade diante da incerteza. Por outro lado, a Fenomenologia, embora compartilhe a cautela investigativa, utiliza a epoché como um meio para acessar a experiência vivida. Assim, o objetivo não é permanecer na dúvida, mas descrever detalhadamente as essências dos fenômenos tais como eles se apresentam à consciência. Ou seja, enquanto o ceticismo se refugia na dúvida como proteção contra o erro, a Fenomenologia se lança na direção do fenômeno como quem deseja escutá-lo sem ruídos; enquanto o ceticismo visa evitar julgamentos definitivos, a Fenomenologia busca compreender e revelar as estruturas essenciais que dão significado à experiência (Holanda, 2014).

Essa abordagem confere à Fenomenologia uma postura neutra em relação ao fenômeno. Contudo, essa neutralidade não significa ausência de profundidade, mas sim um compromisso rigoroso com a fidelidade absoluta à experiência tal como ela é. Operando dessa maneira, a Fenomenologia nos convida a romper com os padrões habituais de pensamento, permitindo que suspendamos os “resíduos do passado” – isto é, preconceitos e conceitos cristalizados – para nos atermos à realidade de forma precisa e desprovida de interpretações prévias, tal como ela se apresenta no momento presente (Yontef, 1998). Esse gesto, ao contrário do que possa parecer, não empobrece a experiência, mas a enriquece. Embora seja amplamente caracterizada como uma metodologia puramente descritiva, Cerbone (2014) ressalta que as descrições fenomenológicas possuem significado prático e podem ser profundamente transformadoras. Essa prática não apenas desvenda os fenômenos, mas também promove uma mudança no próprio observador, que passa de um ente passivo a um sujeito ativo e lúcido da experiência. Em outras palavras, ao descrever os fenômenos de maneira rigorosa, a Fenomenologia nos convida a uma participação mais consciente e engajada com o mundo, rompendo com automatismos e ressignificando nossa relação com o vivido. Assim, em vez de ser levado pela correnteza do automatismo, o fenomenólogo aprende a nadar no fluxo da presença.

A proposta fenomenológica de compreender a essência das experiências , transitando entre as percepções subjetiva e intersubjetiva, estabeleceu um novo modo de conhecer e se destacou como uma abordagem transformadora, pois promove uma compreensão mais profunda do ser humano e de suas vivências. Essa perspectiva não influenciou apenas a epistemologia, mas também áreas como o Existencialismo, a Psicologia da Gestalt e a Gestalt-terapia, com grande impacto nas ciências humanas (Holanda, 2014). Portanto, enquanto Descartes nos legou um império de verdades frias, forjadas pela razão abstrata e sustentadas por um sujeito solitário que contempla um mundo distante como se este fosse um objeto a ser decifrado, a Fenomenologia propõe romper com esse paradigma da separação. Em vez de sustentar a ilusão de um saber neutro e apartado, ela nos convida a habitar um espaço de entrelaçamento — onde sujeito e objeto, razão e emoção, corpo e mundo não existem como opostos isolados, mas como polos em constante relação. Nesse novo horizonte epistemológico, o conhecimento assume sua condição encarnada, histórica, situada, reconhecendo-se implicado, afetado e atravessado por contextos e vínculos. Saber, aqui, não é aprisionar a verdade como quem coleciona relíquias raras, mas co-criar sentidos, permitir-se ser tocado, lançar-se no risco do inacabado. Nesse gesto, o conhecimento deixa de ser um ponto de chegada e se torna uma travessia viva: um modo ético e poético de estar no mundo, com mais presença, mais vulnerabilidade e, sobretudo, mais humanidade.