Fritz Perls nasceu em Berlim, em 8 de julho de 1893, em uma família judia alemã. Desde cedo, mergulhou em conflitos familiares intensos e carregou o peso de um vazio existencial. Em sua autobiografia, descreve um ambiente doméstico marcado por agressões físicas e verbais, onde o pai depreciava brutalmente a mãe, tratando-a como um “pedaço de mobília ou pedaço de merda”. Sentiu-se não desejado pelos pais e, influenciado pelo ressentimento materno, cresceu odiando o pai. Além disso, indignava-se com a hipocrisia religiosa de sua família, que praticava uma fé fria, restrita às aparências e rituais festivos. Tornou-se ateu desde cedo. No ambiente escolar, também encontrou hostilidade: foi alvo de professores cruéis e antissemitas.

Esse colapso de suas bases — familiar, religiosa e escolar — alimentou um sentimento precoce de falta de sentido. Perls deixou de ser um aluno exemplar, passou a detestar a escola, repetiu três vezes a sétima série, foi expulso do colégio, envolveu-se em conflitos familiares, experiências sexuais precoces e chegou a tentar ser aprendiz de mercador, mas foi demitido pouco depois.

O sopro de vida veio com o teatro. Participar das aulas cênicas em sua nova escola rompeu a banalidade que o sufocava. Na verdade, sua afinidade com as artes já vinha da infância: a mãe, mesmo com poucos recursos, o levava a museus e teatros, como o Kroll Theater, onde assistiam de pé por não poder pagar assentos. Mas naquele momento, o teatro deixou de ser apenas interesse — tornou-se sentido.

Com a ajuda de um vizinho ator e diretor, envolveu-se em apresentações e até viajou com trupes. Trabalhou no Teatro Real de Berlim e estudou na escola de Max Reinhardt, a quem considerava um gênio. Reinhardt ensinava a captar a comunicação humana em sua totalidade — não apenas nas palavras, mas nos gestos, nos ritmos, nos silêncios.

Movido por essa sede criativa, Perls participou ativamente dos movimentos culturais da virada do século na Alemanha. Aprofundou-se em teatro, poesia, pintura, filosofia. Teve contato com o expressionismo, que exaltava a experiência singular contra a objetividade fria, e com o dadaísmo, que rompia com lógicas tradicionais – convidando-nos a ver as coisas por outros ângulos e significados. Absorveu o pensamento vitalista de Henri Bergson, defensor da intuição e da experiência direta, e as ideias provocadoras de Nietzsche, que pregava uma existência criativa, livre da moral universal. Também se aproximou do anarquismo alemão dos anos 1920, que combatia hierarquias opressoras.

Toda essa efervescência moldou sua visão de mundo e reacendeu seu impulso acadêmico. Em 1913, ingressou na faculdade de Medicina. Durante a Primeira Guerra Mundial, serviu como médico militar e, ao retornar, especializou-se em Neurologia. Os horrores da guerra o marcaram profundamente, empurrando-o para uma vida boêmia em Berlim, onde frequentou os ambientes da escola de arte vanguardista Bauhaus. Para essa escola, a arte era vital — uma via para reintegrar a sociedade adoecida, ideia que ressoaria mais tarde na Gestalt-terapia.

Em 1922, conheceu Salomon Friedlaender, com quem criou uma forte amizade. Friedlaender formulou a teoria da “Indiferença Criativa”, segundo a qual qualquer convicção pode ser compreendida através de um pensamento dialético de opostos, no qual as posições extremas (matematicamente “-1” e “+1”) se diferenciam a partir do deslocamento de um ponto central de indiferença (o “ponto zero”). Com sua teoria, Friedlaender nos convidou a abandonar o mapa e explorar o território – a trocar as abstrações universalizadas pelas singularidades da vivência concreta. Seu chamado era claro: estar presentes, livres de julgamentos apressados, evitando o aprisionamento em rótulos ou definições fixas. Propunha que, ainda que por um instante, pudéssemos nos esvaziar de nossas “queridas convicções”, permitindo que algo novo emergisse do espaço entre os extremos. Ao introduzir o conceito de Indiferença Criativa, não sugeria o apagamento, mas uma suspensão momentânea de nossas verdades cristalizadas. Portanto, estar no “ponto zero” é libertar-se do impulso de escolher antes de ver, de decidir antes de tocar – porque só age com liberdade quem é capaz de não agir por automatismo. Nessa concepção, o ponto zero não representa inércia, mas potência latente. Essa ideia, profundamente influenciada por Nietzsche, marcou Perls com força: o vazio passou a ser visto não como ameaça, mas como condição para o surgimento de possibilidades.

Nietzsche questionou veementemente a tradição filosófica inaugurada por Sócrates, acusando-a de impressionar os tolos e de ser um dos pilares da decadência da civilização. Para ele, essa tradição impôs o predomínio do espírito “apolíneo” – ligado a Apolo, deus da ordem, severidade, equilíbrio e razão – em detrimento do espírito “dionisíaco”, associado a Dioniso, deus da música, vitalidade, excesso e afetividade. Essas duas forças, originalmente complementares e dialéticas, foram desequilibradas com o avanço da filosofia racionalista e do pensamento científico, que reprimiram as forças vitais e intuitivas do ser humano

Para Nietzsche, a moral não é uma verdade divina ou universal, mas uma construção histórica. Ela não “caiu do céu”: foi criada, sobretudo por indivíduos de “força reativa” – associados ao espírito apolíneo, voltados à conservação, à repressão, à adaptação – com o propósito de conter aqueles de “força ativa”, ligados ao espírito dionisíaco, à ação e à criação. Assim nasce a “moral de rebanho”: uma moral que exalta a submissão e nega a potência vital – tratando-se, em sua visão, de uma ferramenta inventada pelos fracos para subjugar os fortes. Chamou esse apagamento vital de “niilismo”. Contra isso, propôs uma filosofia da afirmação: da reconciliação com o presente, com a existência mundana, com o corpo, com os impulsos — um resgate do espírito dionisíaco.

Por essas características, Nietzsche foi mais tarde reconhecido como um dos precursores do existencialismo. E no existencialismo, o termo “mundano” refere-se à dimensão ordinária da existência, onde corpo, cultura e desafios cotidianos se entrelaçam. Nietzsche propunha que, em vez de buscarmos utopias idealizadas ou tentarmos escapar das “amarras mundanas”, enfrentemos o mundo tal como ele é – pois é o real e o vigente. Viver plenamente, para ele, é assumir o mundano em sua inteireza, acolhendo as contradições e os impulsos da vida, sem aguardar um momento ideal para ser feliz. A felicidade, se houver, nasce do enfrentamento lúcido do agora – não de promessas futuras, nem de condicionais como: “quando isso ou aquilo acontecer, então serei feliz”.

Heráclito, a quem Nietzsche admirava, afirmava que tudo flui, tudo se move, nada permanece. Heráclito via a realidade como um constante embate entre opostos – calor e frio, vida e morte – e defendia a legitimidade do conhecimento sensorial, desde que se reconhecesse a natureza fluida e mutável de tudo o que existe. Sua metáfora do rio — no qual não se pode entrar duas vezes — expressava a impermanência radical da existência. Nietzsche e Heráclito, cada um à sua maneira, destruíram certezas e devolveram o ser humano ao fluxo da vida, ao contato com a impermanência.

Essas influências revelam-se mais tarde na obra de Perls. Para ele, o organismo adoece não por sentir, mas por evitar o contato. Sua psicoterapia será uma psicoterapia do contato — com o corpo, com o outro, com o mundo, no aqui e agora. Sua crítica à vida medíocre e à repetição neurótica ressoa com a denúncia nietzschiana da cultura da culpa e da submissão, assim como com a crítica heraclítica à ideia de uma identidade fixa ou de respostas definitivas para a vida. Todos, à sua maneira, buscavam libertar: Nietzsche, das regras estereotipadas e das promessas vazias; Heráclito, dos rótulos reducionistas e da ilusão de estabilidade; Fritz, da rigidez ao passado e da submissão as expectativas alheias

Em 1925, a psicanálise entrou na vida de Perls. Motivado por conflitos familiares e um relacionamento com uma mulher casada, iniciou análise com Karen Horney e decidiu tornar-se psicanalista. Ainda que mais tarde se tornasse crítico da psicanálise, jamais negou sua admiração por Freud, reconhecendo-o como o primeiro a escutar o paciente como sujeito.

Na formação com Horney, ingressou no Instituto de Psicanálise de Berlim e, mais tarde, estudou em Frankfurt, sob a supervisão de Kurt Goldstein, neurologista e criador da Teoria Organísmica. Goldstein dirigia um renomado instituto voltado à reabilitação de soldados com lesões cerebrais, onde Perls teve contato com a Psicologia da Gestalt, a Teoria de Campo e o Holismo.

Em um curso com Adhémar Gelb, Perls conheceu Lore Posner (Laura Perls). Casaram-se em 1930, apesar da resistência da família dela. Em 1931, nasceu a filha do casal. Naquele momento, tudo parecia promissor — até a ascensão do nazismo mudar suas vidas.

Perseguido por ser judeu e por seu envolvimento na resistência, Fritz fugiu para a Holanda com apenas vinte e cinco dólares escondidos em um isqueiro. Passou por miséria até a família se reunir novamente. Na Holanda, concluiu sua formação e associou-se à Sociedade Psicanalítica. Em seguida, mudou-se para Johannesburgo, na África do Sul, onde fundou, junto a Laura, o Instituto Sul-Africano de Psicanálise.

Lá conheceram Jan Smuts, formulador da teoria do Holismo, que passou a integrar a base da Gestalt-terapia. Vivendo com prosperidade, afastaram-se gradualmente da ortodoxia psicanalítica. Laura rompeu com o uso do divã, instaurando sessões face a face. A clínica passou a valorizar o encontro e a presença.

Em 1936, Fritz participou do Congresso Internacional de Psicanálise, na Tchecoslováquia, e voltou de lá profundamente frustrado. Seu voo triunfal foi substituído por uma viagem de navio; sua palestra sobre resistências orais foi rechaçada. Ao reencontrar Wilhelm Reich, foi recebido com frieza. E sua breve e decepcionante audiência com Freud selou seu desencanto: “Bem, e quando você volta?”, foi a única frase do mestre.

Esses episódios simbolizaram a queda de seus ídolos. Sentiu-se um “cigano solitário”, sem referências teóricas. Porém, foi desse vazio que nasceu “Ego, Fome e Agressão” — não apenas um livro, mas uma ruptura. Nele, Perls propôs uma revisão crítica da psicanálise, buscando integrar corpo, presente e consciência. Rejeitou a associação livre e propôs a “terapia de concentração”: foco, presença e awareness como chaves para dissolver sintomas.

Central na obra está a reinterpretação da agressividade, vista não como destrutiva, mas como impulso vital. Assim como os molares trituram o alimento, o indivíduo precisa “mastigar” sua experiência para assimilá-la. Ao reprimir esse impulso, a agressividade se desvia e pode tornar-se patológica.

A guerra retornou. De 1942 a 1945, Perls serviu como médico na Segunda Guerra — desta vez combatendo os alemães. Ao fim, encontrou uma África do Sul mergulhada em crise. Então, em 1947 se mudou para Nova York com a família, em meio à ascensão dos EUA como polo intelectual global. Foi lá que a Gestalt-terapia nasceu.