A Psicologia Humanista surgiu em oposição a posturas frias e indiferentes que antes marcavam muitas práticas psicoterápicas. Trouxe a convicção de que o crescimento e a cura acontecem no encontro vivo entre terapeuta e cliente, quando ambos se engajam em um diálogo autêntico e recíproco, livre de julgamentos e censuras. O foco desloca-se do “o que fazer” para o “como fazer”: o terapeuta precisa estar presente, atento e criativo, perguntando, explorando, nomeando gestos e atitudes, participando da experiência imediata e favorecendo uma compreensão mais clara das formas de contato que a pessoa estabelece com o mundo.

Essa atitude não pode ser programada como um manual de conduta. Ela nasce da reflexão, da experiência acumulada e da abertura ao encontro, pois é no vínculo entre duas pessoas que a postura terapêutica ganha sentido. Ribeiro afirma que essa atitude original brota do olhar conjunto, de um amor que não se prende a normas externas, mas que se revela como a verdadeira norma da relação. Nesse movimento, o terapeuta fenomenológico-existencial vive uma tensão: deve suspender seus próprios desejos e expectativas, colocando-se entre parênteses para não invadir o caminho do outro, mas, ao mesmo tempo, precisa responder à expectativa de resultados trazida pelo cliente. Só uma postura autenticamente amorosa permite transitar nesse paradoxo, entrando sem arrombar, oferecendo a mão sem conduzir.

Assim, o objetivo da psicoterapia não é reduzir o sofrimento a sintomas isolados, mas compreender a totalidade da situação vivida. Tratar apenas o sintoma é aliviar, mas não curar. A tarefa do terapeuta será acolher tanto a dor imediata quanto o sentido que ela carrega, favorecendo que a mudança iniciada se expanda para outras dimensões da vida. A psicoterapia, portanto, não se limita a improvisações criativas ou à intuição do profissional, mas constitui um método sustentado por fundamentos teóricos. O psicoterapeuta não caminha à frente apontando rotas; acompanha, participa, ilumina aspectos encobertos e ajuda o cliente a se apropriar de sua experiência.

Nesse viés, a psicoterapia se transformou em um caminho não apenas para os ditos “doentes”, mas para qualquer pessoa que busque um conhecimento mais profundo de si mesma. O cliente não é visto como alguém a ser consertado, mas como alguém que já possui recursos e que pode aprender a confiar neles. Cabe ao terapeuta facilitar a remoção de obstáculos e apoiar o desenvolvimento dessas capacidades, reforçando a confiança na autorregulação organísmica.

A postura humanista implica respeito à dignidade, à singularidade e ao ritmo de cada pessoa. O terapeuta reconhece que até mesmo modos disfuncionais de existir podem ser compreendidos como tentativas criativas de lidar com uma realidade ameaçadora. Em vez de criticar ou impor mudanças, busca ampliar a awareness, ajudando o cliente a explorar novas formas de contato consigo e com o mundo. Zinker descreve esse processo como uma combinação entre o reconhecimento da integridade pessoal do cliente e a abertura para experimentar novas possibilidades de ser. O dilema do cliente é viver entre a segurança de sua integridade conhecida e a necessidade de mudança; cabe ao terapeuta sustentar esse campo de tensão, encorajando-o a experimentar sem perder de vista a compreensão e o respeito por sua forma atual de existir.

Na tradição gestáltica, isso significa valorizar os aspectos positivos e criativos da pessoa. A psicoterapia é compreendida como um espaço de reencontro com a força vital, com a espontaneidade, com a beleza e com o potencial transformador. É um processo que convoca cada um a agir com radicalidade, isto é, a assumir-se em sua totalidade, em busca da consumação de sua essência. A terapia torna-se, assim, mais que um espaço semanal: transforma-se em um estado de espírito que permeia a vida cotidiana, fazendo de cada experiência uma oportunidade de mudança.

A Gestalt-terapia insere-se nesse campo humanista como uma proposta existencial e filosófica, que entende a pessoa não como um conjunto de sintomas, mas como uma totalidade integrada em constante relação com o mundo. Ao invés de combater resistências, compreende-as como expressões criativas que merecem ser respeitadas e exploradas. A neurose não é vista como doença, mas como interrupção do crescimento, resultado de evitamentos que paralisam o contato. A tarefa da terapia é favorecer que a pessoa recupere o fluxo interrompido, completando gestalten inacabadas e reconquistando sua energia vital.

Nesse processo, a palavra ocupa um lugar central. Na perspectiva fenomenológica, ela não é mero signo, mas expressão do ser. Fazer a palavra falar significa transformar sentimentos vagos e sufocantes em discursos plenos de sentido, possibilitando ao cliente ressignificar sua experiência. A escuta terapêutica não é da forma, mas do sentido, permitindo que o fenômeno do cliente emerja em sua totalidade. Como um jardineiro que cria condições para que a planta cresça por si mesma, o terapeuta cultiva o terreno para que o cliente desvele suas próprias possibilidades.

A Gestalt-terapia se ancora na ideia de que o ser humano é um projeto existencial, sempre em construção, livre e responsável por suas escolhas. A psicoterapia é o espaço onde esse projeto pode ser reconhecido, atualizado e levado adiante. Ao favorecer o contato autêntico, a ampliação da awareness e o ajustamento criativo, ela promove não apenas a superação do sofrimento, mas também o florescimento da singularidade e da liberdade de cada pessoa.

A psicologia fenomenológico-existencial constitui uma vertente da psicologia inspirada no movimento filosófico homônimo, destacando a subjetividade, a liberdade, o sentido e a responsabilidade pessoal. Ribeiro (2017) lembra que não existe “a” fenomenologia como conceito unívoco, mas múltiplas fenomenologias, de acordo com os diferentes pensadores que a desenvolvem. Diferentemente de abordagens que se voltam apenas ao comportamento observável ou ao psiquismo, essa perspectiva concentra-se na vivência mundana em sua busca de sentido, explorando consciência, angústia, liberdade, escolha e responsabilidade. A ênfase recai sobre o presente da relação terapêutica, sobre o que emerge aqui e agora no encontro entre cliente e terapeuta.

Para Ribeiro (2017), a psicoterapia fenomenológica trabalha o dado tal como se apresenta à consciência, descrevendo-o fielmente, sem hipóteses prévias de causa ou origem. O psicoterapeuta adota a atitude de epoché — um estado de suspensão de juízos e saberes prévios —, cultivando uma “ignorância intencional” diante do cliente para que nada se interponha entre ambos. Essa postura se fundamenta em três princípios centrais da fenomenologia: retorno às coisas mesmas, redução fenomenológica e intencionalidade. Holanda (2014) adverte, porém, que não se trata de transpor mecanicamente conceitos filosóficos para a clínica, mas de aplicá-los com cuidado e rigor.

As psicoterapias fenomenológicas, como sintetiza Ribeiro (2017), são hermenêuticas existenciais que privilegiam descrições em lugar de explicações. Não lidam com sintomas isolados, mas com os processos que os mantêm. Não se apoiam em causalidades prévias, mas no aqui-agora da experiência, entendendo o cliente como um ser em ação que atribui sentido à sua existência. Trabalham a consciência como produtora de sentido, resgatando a experiência imediata do sujeito e reconhecendo a intencionalidade de toda percepção. Payá (2011) acrescenta que, embora evitem definições abrangentes do humano, as fenomenologias reconhecem estruturas fundamentais da existência, como a temporalidade e a espacialidade. Assim, a psicoterapia torna-se sempre um processo de auxílio inter-humano.

Nesse horizonte, fazer psicoterapia fenomenológica é estudar o ser dentro da vida que se leva, lidar criticamente com a realidade, acolher as aparências como pistas do real e reconhecer que o contato, ainda que precário, é a única medida de verdade disponível (Ribeiro, 2017). Daí a recusa a uma atitude prescritiva, própria do modelo médico, que diagnostica, enquadra e propõe protocolos a priori. Para a fenomenologia, dois clientes que manifestam sintomas semelhantes podem ter histórias e sentidos existenciais distintos; a prescrição, por isso, tende a reduzir o sujeito a uma parte e não ao todo, além de, muitas vezes, transferir ao cliente a culpa pelo fracasso do tratamento.

A psicoterapia fenomenológica, ao contrário, remete o indivíduo a si mesmo. Heidegger e Binswanger ressaltaram que a psicologia deve tratar o fenômeno humano em sua totalidade, não apenas o homem adoecido. Giovanetti (2018) afirma que não se trata de curar uma “doença” abstrata, mas de compreender o homem em sua existência singular, situada cultural e socialmente. A finalidade, segundo Ribeiro (1985, 2017), é levar o cliente à consumação de si mesmo, retomando uma sincronia integral consigo, capaz de dizer o que sente e sentir o que diz.

Nesse processo, o terapeuta não intervém para moldar comportamentos, mas acompanha o cliente em seu ritmo, atento às dimensões inseparáveis de sua existência: relação consigo, com os outros e com o mundo (Ribeiro, 2017). Como lembra Holanda (2014), trata-se de uma postura compreensiva, de um observador que participa sem interferir, facilitando a emergência do ser do cliente. O psicoterapeuta é, portanto, um facilitador do fenômeno-cliente.

A Gestalt-terapia, inserida nessa tradição, partilha a atitude fenomenológica. Joyce e Sills (2016) descrevem-na como a tentativa de permanecer o mais próximo possível da vivência do cliente, ajudando-o a explorar o aqui-agora e a perceber como constrói sentido. Para tanto, o terapeuta deve suspender seus próprios juízos, cultivar abertura e curiosidade genuína. Um exemplo clínico ilustra essa atitude: diante da notícia de uma gravidez, o terapeuta evita reagir automaticamente com entusiasmo, investigando antes as nuances emocionais do cliente, que revela inseguranças e preocupações. Assim, abre-se espaço para a exploração da experiência tal como é vivida.

O objetivo último é favorecer o contato pleno, estado em que sentir, pensar e agir se integram em um fluxo criativo. A Gestalt-terapia compreende que o sofrimento nasce das interrupções desse fluxo — figuras inacabadas, polaridades alienadas, bloqueios do contato. A tarefa é ampliar a awareness dessas gestalts ocultas e favorecer sua integração. Como afirmam Perls, Hefferline e Goodman (1997), a terapia deve liberar a energia fixada, tornar conscientes os introjetos e confiar no poder integrador do self.

Juliano (1999) sintetiza esse percurso com a metáfora do “dragão”: o cliente chega à terapia pedindo ajuda para livrar-se de sua dor, mas acaba sendo conduzido, firme e suavemente, pelos caminhos que evitava. Ao conhecer de perto o inimigo, já não o vê como monstro externo, mas como parte de si mesmo, dissolvendo a polarização entre herói e dragão.

Nessa perspectiva, o critério de uma terapia bem-sucedida não é a eliminação de sintomas, mas a ampliação do autoapoio e da capacidade de ajustamento criativo. A psicoterapia é, em essência, um resgate do processo criativo do ser humano, uma oportunidade de recuperar a integração entre corpo, mente e afeto, de modo que o indivíduo possa viver em sincronia consigo e com o mundo.

Perls e colaboradores insistem que o trabalho clínico se faz no aqui e agora, na fronteira de contato entre cliente e terapeuta. Mesmo no silêncio ou na ausência de conteúdo aparente, algo sempre acontece. A tarefa do terapeuta é sustentar esse vazio fértil, esperando que algo emerja e convidando o cliente a descrevê-lo. O experimento gestáltico, nesse contexto, é sempre resposta ao que se apresenta, nunca imposição prévia. Sua função é ampliar a percepção e liberar energia bloqueada, permitindo que novas formas de ser e agir se tornem possíveis.

A sessão gestáltica é, portanto, um laboratório de autodescoberta. Ela começa com a troca espontânea de awareness, afunila-se em torno de um tema significativo e se transforma em experimentos que possibilitam mudanças de percepção e de comportamento (Zinker, 2007). O terapeuta, nesse processo, não é quem cura ou prescreve, mas quem sustenta o campo para que o cliente se encontre, integre suas polaridades e retome seu poder criador.

Em última instância, tanto a psicologia fenomenológico-existencial quanto a Gestalt-terapia compartilham a mesma meta: devolver ao ser humano a possibilidade de viver de modo criativo, integrado e responsável, reconhecendo que a vida não se reduz a normas ou diagnósticos, mas se revela no encontro vivo e singular com o outro e com o mundo.

Compreender, na Gestalt-terapia, não é apenas saber o que algo é, mas perceber como se dá em sua relação com o mundo. Por isso, o holismo se torna uma exigência epistemológica: só há real compreensão quando o fenômeno é visto em seu campo, em seu contexto, em sua base ontológica. Entender um ajustamento não é apenas descrever um comportamento, mas captar a necessidade que o impulsiona, o afeto que o colore e o impacto que provoca. Compreensão é visão de campo: perceber como cada parte reverbera no todo e como o todo dá sentido às partes.

Na prática, o terapeuta atua como facilitador da awareness, apoiando o cliente a reconhecer seus ajustamentos criativos. Em vez de julgá-los, busca compreendê-los em sua função, origem e sentido, investigando o “o quê”, o “como” e o “para quê” de cada fenômeno. Traduzindo e reorganizando elementos do campo, favorece uma percepção mais nítida e ajustada à realidade presente, abrindo caminho para novas possibilidades de ser.

É nesse ponto que a queixa assume relevância clínica. O sofrimento deixa de ser apenas um sintoma a ser combatido e se torna sinal de que um ajustamento perdeu função diante de novas condições do campo. A dor, o lamento, a insatisfação são portas de entrada para transformação. A cada sessão, o cliente se vê diante de uma escolha: como responderá às forças do campo? O que fará com sua experiência?

A queixa, geralmente dirigida ao outro, expressa aquilo de que o cliente ainda não se responsabiliza. O namorado distante pode revelar uma dificuldade de comunicar necessidades; o amigo invasivo pode expor um medo de se posicionar; o chefe que não valoriza pode apontar para uma dependência de validação externa. Se ficamos apenas na queixa, o cliente permanece na posição de vítima. Mas o trabalho terapêutico consiste em devolver-lhe a agência: “E o que você faz com isso agora?”.

Assumir responsabilidade não significa culpar-se, mas reconhecer a possibilidade de transformação. É deslocar o olhar do “o outro faz isso comigo” para “como eu me coloco diante disso”. Essa postura não é obrigação moral, mas compromisso com a própria experiência. Tudo o que nos toca exige uma resposta, ainda que mínima. Negar essa responsabilidade nos mantém presos a repetições estéreis. Já assumi-la nos reconecta à potência de viver.

Muitas vezes, a espera pelo outro se torna uma fuga. Esperamos que alguém resolva, que o tempo cure, que as circunstâncias mudem sozinhas. Mas isso nos enfraquece. Ninguém pode viver por nós, sentir por nós, decidir por nós. O crescimento exige renúncia a padrões que já não funcionam e disposição para se modificar diante das forças que nos atravessam.

O mesmo vale para o campo. As queixas do ambiente também revelam aspectos do sujeito. O marido que ignora os incômodos da esposa perpetua a desarmonia; o pai que se queixa do filho sem perceber sua própria ausência reforça o padrão. Tudo no campo se comunica, e a estagnação de um lado ecoa no outro.

Compreender o que nos incomoda não é assumir culpa, mas reconhecer responsabilidade. Sofrimento se perpetua onde há rigidez; transformação acontece quando escutamos o que o campo nos diz. Ser responsável, nesse sentido, não é carregar um fardo, mas tomar posse da própria vida. Não há como terceirizar a existência. A Gestalt-terapia nos lembra que não há plenitude na passividade: viver é responder criativamente ao que nos atravessa.

A psicoterapia, então, torna-se o espaço em que o excitamento natural da vida pode voltar a fluir. Quando um desejo emerge, quando uma figura se forma, há um chamado para o crescimento. O papel do terapeuta é sustentar esse movimento, permitindo que encontre expressão legítima. O oposto é a vida encapsulada, onde o excitamento se volta contra si mesmo e se transforma em tensão, angústia e sintomas.

O ser humano, por natureza, é ser de relação. Quando esse fluxo é interrompido, entusiasmo vira ansiedade, vitalidade se converte em isolamento. A energia que poderia ser criativa se enrijece em repetição. Mas esse estado não é falha pessoal, e sim um ajuste fixado. A terapia não busca moldar a pessoa a um padrão funcional, mas restaurar o fluxo do excitamento, devolvendo-lhe a capacidade de responder criativamente à realidade.

O que distingue uma vida saudável de uma vida engessada não é a ausência de sofrimento, mas a forma como se lida com ele. Sofrer pode ser parte do crescimento quando nos leva a integrar o que estava suspenso. O trabalho terapêutico, nesse sentido, é oferecer suporte para que o que busca existir encontre passagem. Quando isso acontece, a energia antes aprisionada se transforma em impulso vital. O que antes aprisionava, agora impulsiona. E os sintomas se dissolvem – não porque foram eliminados à força, mas porque perderam a função.

Quando um cliente chega à terapia, carrega fragmentos dispersos, experiências alienadas, gestos interrompidos que ficaram suspensos no tempo. Cabe ao processo terapêutico criar um espaço de presença onde esses pedaços possam, pouco a pouco, ser reconhecidos, nomeados e reintegrados. Não se trata de eliminar sintomas com pressa ou corrigir falhas com técnica, mas de favorecer um reencontro — do self consigo mesmo e com o mundo — onde o que estava dissociado possa voltar a pulsar com coerência. Uma situação não resolvida se perpetua como uma ferida aberta: insiste em retornar nos sonhos, se repete nos vínculos, imprime marcas no corpo. Em vez de suprimi-la, a Gestalt-terapia busca restaurar o campo em que ela possa finalmente se completar — seja por meio da liberação de uma emoção contida, do reconhecimento de uma escolha evitada ou da aceitação de uma perda inescapável.

O campo terapêutico torna-se, assim, um laboratório existencial. Terapeuta e cliente não são polos distantes de uma equação, mas coautores de uma experiência única e imprevisível. O terapeuta não ocupa o lugar de espectador neutro, mas de presença viva e envolvida, oferecendo sua escuta, sua sensibilidade e sua humanidade como partes do processo. A clínica se configura como espaço de co-criação — lugar onde as feridas se revelam e, com elas, as possibilidades de transformação. A integração não é um objetivo distante, mas algo que se dá no calor do encontro, no ritmo vivo do diálogo.

Epistemologicamente, a Gestalt-terapia se funda também no princípio da integração. Não se fixa a escolas ou dogmas, mas transita criticamente por saberes diversos: acolhe a psicanálise sem se tornar psicanalítica, dialoga com a fenomenologia sem se restringir à filosofia, inspira-se na teoria de campo sem diluir-se na psicologia social. Essa postura não representa omissão teórica, mas abertura radical à experiência — riqueza e vulnerabilidade ao mesmo tempo. Ao não contar com um corpo teórico unívoco, exige do terapeuta uma postura de constante reflexão, a coragem de sustentar a tensão entre múltiplas referências sem apressar soluções simplificadas.

Essa complexidade se estende à concepção de saúde e doença. Na Gestalt-terapia, o sofrimento não é mero sinal de falha orgânica ou distúrbio intrapsíquico. Ele é entendido como um bloqueio no fluxo da autorregulação. Saúde, por sua vez, não é ausência de sintomas, mas a capacidade criativa de responder às demandas do campo, ajustando-se sem trair a si mesmo. A doença surge quando esse movimento vital se cristaliza, quando o contato se torna rígido, repetitivo, disfuncional. Assim, o objetivo da clínica não é normalizar o sujeito, mas restaurar sua confiança na própria capacidade de viver o contato — enfrentando a angústia da escolha, assumindo a responsabilidade de existir.

Tal visão só é possível porque, na Gestalt-terapia, o ser humano é compreendido como indissociável de seu mundo. Não há indivíduo isolado: há sempre uma relação em curso, um campo em constante transformação. Kurt Lewin já havia afirmado que o comportamento só pode ser entendido pelas forças que operam no campo; a Gestalt-terapia radicaliza esse princípio, compreendendo que a vida acontece na fronteira de contato — esse lugar sutil e dinâmico onde eu e mundo se tocam. É aí que emergem as experiências, se configura o self e se constrói o sentido. O campo não é cenário — é tecido vivo, protagonista, em constante coemergência com o sujeito.

Carregamos, no entanto, uma herança cultural que exaltou a razão e demonizou o corpo e os afetos. Desde o Renascimento, a razão foi consagrada como instrumento de domínio do mundo, enquanto os afetos e a irracionalidade foram relegados à categoria do erro ou da patologia. A Gestalt-terapia, ao lado das críticas de Fritz e Laura Perls, reconhece o perigo dessa cisão: ao separar corpo, afeto e razão, produz-se um sujeito fragmentado, alienado de sua própria inteireza.

Contudo, desde o início da vida, é o corpo que nos conecta ao mundo. O bebê se relaciona por meio do toque, do olhar, do movimento espontâneo. Com o tempo, porém, a espontaneidade vai sendo podada: não pode olhar, não deve perguntar, não se deve tocar. Esse processo dessensibiliza, empobrece a percepção, bloqueia a vitalidade (Aguiar, 2005; Oaklander, 1980). Para a Gestalt-terapia, o corpo é portador de sabedoria. Ribeiro (2006) nos lembra: o corpo não mente. Quando forçado a negar suas necessidades, responde com sintomas ou com saúde — sempre buscando comunicar o que é vital.

Nesse cenário, emerge o conceito de autorregulação organísmica. O organismo possui recursos naturais para buscar equilíbrio. Quando impedido de usá-los, adoece. O ajustamento criativo — conceito-chave — expressa essa capacidade de inventar respostas diante de condições adversas, ainda que sejam soluções disfuncionais. Muitas doenças são, assim, tentativas desesperadas de ajustamento (Ribeiro, 2006). O organismo não adoece por fraqueza, mas por exaustão diante de necessidades não escutadas.

Essa visão se amplia com o holismo: nada existe isoladamente. Corpo, mente e espírito não competem — se entrelaçam em uma totalidade viva. O ser humano é uma totalidade em si e parte de uma totalidade maior: o campo organismo-ambiente. Ideologias, vínculos, forças culturais e ecológicas constituem esse campo. Por isso, compreender o ser humano é compreender sua inserção no mundo — como quem está no e com o mundo.

A partir dessa compreensão, Perls propõe a noção de ego insubstancial. Diferente da ideia psicanalítica de um ego estruturado e censor, o ego na Gestalt é uma função — criadora, integradora, relacional. Quando saudável, regula o contato de modo fluido, assimilando ou rejeitando experiências conforme a necessidade do campo. Quando adoecido, cristaliza-se em identificações rígidas — os “deverias” introjetados que engessam a espontaneidade (Perls, 2002; Helou, 2015).

Esses fundamentos, inspirados na fenomenologia e na psicologia da Gestalt, sustentam a Gestalt-terapia como uma prática existencial. O humano é concebido como ser-no-mundo, ser-em-relação, construtor e criatura do campo em que vive. Na clínica, corpo, afeto e razão não se opõem: se articulam, se influenciam, se revelam em diálogo constante. O mundo, por sua vez, é concebido como uma grande gestalt — um todo em permanente processo de configuração. O que acontece em uma parte reverbera no todo. A realidade é uma rede viva de trocas e finalizações criadoras.

Nesse campo vivo, a autorregulação se manifesta através do surgimento de necessidades que emergem como figura no contato. Como ilustra Perls (1977), a sede mobiliza a percepção, que busca a água e encerra o ciclo com o ato de beber. É nesse fluxo que se realiza a vida, e é nele também que se inscreve o trabalho terapêutico. A realidade só existe no agora. Embora possamos recordar o passado ou imaginar o futuro, tudo acontece no presente. Fixar-se no que já passou ou no que virá é perder o contato com a vida.

A awareness — consciência vívida do que se passa em mim e à minha volta — é o caminho de reconexão. Perls (1977) afirma que a técnica da Gestalt é sustentar esse continuum de awareness, onde as situações inacabadas possam emergir e encontrar fecho. O luto, por exemplo, só se elabora no presente: não importa apenas o que o morto foi, mas o que ainda representa para quem ficou (Perls, 2002). A gestalt inacabada não desaparece — ela insiste, até ser completada.

Na clínica, o sintoma é visto como tentativa de ajustamento. Ele é a melhor solução que o organismo encontrou dentro de um campo adverso. Escutá-lo é escutar a inteligência do organismo. A transformação começa quando o sintoma é compreendido em seu contexto, e o cliente pode ensaiar novos modos de contato, mais congruentes com seu presente. O insight — reorganização súbita da percepção — acontece quando se reconhece o que estava invisível: a dor de cabeça como raiva contida, o cansaço como negação de descanso. O insight é digestão: o que estava suspenso ganha forma e se reintegra.

O terapeuta não cura — oferece presença. É campo fértil, não engenheiro de mudanças. Sua tarefa não é convencer, mas favorecer o contato. Quando o cliente experimenta no corpo a verdade de seu sofrimento, emerge o querer: o desejo de sair do lugar onde sangra. E querer é a porta da transformação. A cura, nesse horizonte, não é conserto nem normalização. É reintegração. É a possibilidade de tornar-se mais inteiro, acolher a dor sem se fundir a ela, agir com liberdade.

A relação terapêutica é o chão onde essa cura acontece. Não porque o terapeuta tem as respostas, mas porque oferece presença segura. A dor deixa de ser monólogo e se torna encontro. A cura se dá no contato, na verdade sustentada, na coragem de estar. A transformação não se impõe — floresce. E isso é, ao mesmo tempo, exigente e belo.

A mudança não ocorre no vácuo. Na Gestalt-terapia, o indivíduo não é concebido como um sistema isolado, tampouco o sintoma como um desvio exclusivamente pessoal. Todo sintoma é uma resposta criativa — muitas vezes desesperada — a um campo específico. Cada rigidez no modo de ser foi, em algum momento, a melhor forma de sobreviver ao ambiente em que se estava inserido. Como, então, julgá-la?

Evitamento, retroflexão, confluência, controle excessivo — são expressões de ajustamentos criativos forjados em contextos que não favoreceram o florescimento espontâneo. Por isso, o trabalho clínico não se propõe a “corrigir o cliente”, como se apenas ele estivesse fora de lugar. A proposta é outra: criar novos campos de existência nos quais esse ser possa respirar com liberdade, experimentar novas formas de estar, pertencer com verdade.

O ajustamento criativo não é conformismo, mas invenção viva. O terapeuta torna-se esse primeiro campo modificado — uma espécie de bolha provisória onde o cliente pode experimentar-se de forma inédita: dizer “não” sem ser punido, silenciar sem ser esquecido, expressar afeto sem ser absorvido. Esse ambiente, por si só, é já uma intervenção — revela que o mundo pode ser diferente, que os campos são transformáveis.

A partir dessa experiência relacional, o cliente carrega para fora da sessão sementes de mudança. Talvez não transforme o mundo inteiro, mas pode alterar os mundos que habita: revisar vínculos opressivos, afastar-se de contextos que silenciam, criar espaços de pertencimento mais nutritivos, reorganizar rotinas em sintonia com seu ritmo interno.

Não adianta, por exemplo, trabalhar o medo do abandono se o cliente permanece envolto em relações que reiteram esse abandono. Tampouco adianta resgatar sua raiva se vive em campos que punem qualquer expressão de agressividade. E de pouco serve ajudá-lo a nomear suas necessidades se, fora da clínica, todo gesto de cuidado consigo é taxado como egoísmo.

Mudar o campo é um gesto ecológico: cuidar da trama relacional que sustenta a existência. É transformação por dentro e por fora, uma dança entre o psicológico, o político e o existencial. E mudar para quê? Para viver em maior coerência com o que pulsa por dentro. Para deixar de ser apenas sobrevivente e tornar-se habitante pleno da própria vida. Cura, nesse horizonte, não é retiro interior, mas retorno criativo ao mundo — mesmo que esse mundo comece por uma sala, uma amizade, uma rotina em que, finalmente, se possa respirar com menos medo e mais verdade. E isso, por si só, é revolução.

O papel do gestalt-terapeuta não é promover mudanças forçadas, mas cultivar um espaço onde a vulnerabilidade possa emergir sem medo — um campo seguro onde o reprimido possa voltar à consciência e reencontrar seu lugar. Essa ampliação da awareness acontece na relação: é ali que o cliente pode abandonar narrativas desgastadas e experimentar versões mais autênticas de si.

Mas há um equívoco persistente: a fantasia de que o terapeuta precisa ser inteiro, resolvido, imune ao caos. A verdade é que também estamos em pedaços — e está tudo bem. O problema não é a fragmentação, mas a recusa em assumi-la. A Gestalt não exige perfeição, mas presença lúcida e responsável. O curador ferido só pode cuidar se reconhece suas próprias feridas — não para colocá-las em primeiro plano, mas para não contaminarem o campo.

E surgem perguntas comuns: o que fazer quando o cliente me irrita? A questão não está no outro, mas no que emerge em mim no campo compartilhado. A irritação é dado clínico: pode apontar um limite pessoal, uma sombra tocada, uma figura que merece atenção. Apropriada, transforma-se de risco em bússola.

E se eu não gostar do cliente? O “não gostar” também é dado de campo. A pergunta é: consigo manter o respeito e a presença mesmo na ausência de afeto espontâneo? Muitas vezes, é justamente o cliente que menos desperta simpatia quem mais precisa ser visto com inteireza — sem sedução, sem julgamento.

E o medo de errar? Surge da ilusão de que o erro invalida o terapeuta. Mas não há clínica viva sem erro. Errar faz parte do ofício. O risco não está em falhar, mas em negar a falha, escondê-la, fugir da responsabilidade. A Gestalt-terapia pede presença, congruência e disposição para sustentar o inacabado.

E se eu entrar em crise e não puder atender? Isso pode acontecer — porque também somos humanos. O ponto não é evitar a crise, mas reconhecê-la com ética. Interromper um atendimento, se necessário, não é abandono: é cuidado com o outro e consigo.

A clínica não exige invulnerabilidade — exige verdade. Ser verdadeiro é o suficiente.