Holismo

A Gestalt, inicialmente compreendida como um conceito ligado à percepção, foi ampliada pelos psicólogos da escola gestaltista para campos como a biologia, a física e as artes, revelando que os princípios de organização e interação das partes dentro de um todo são universais e não restritos ao funcionamento psíquico humano. Fritz Perls, sensível a essa constatação, afirmou: “Gestalt! Como posso fazer entender que gestalt não é só mais um conceito inventado pelo homem? Como posso dizer que gestalt é – e não só para a psicologia – algo inerente à natureza?” (Perls, 1979, p. 79). Essa percepção da universalidade abriu caminho para uma nova metodologia de pesquisa, que se contrapunha ao mecanicismo dominante da época.

Enquanto o mecanicismo fragmentava os fenômenos em elementos isolados, acreditando compreendê-los a partir da soma de suas partes, os gestaltistas insistiam na primazia da análise global. Para eles, os processos individuais só podem ser compreendidos dentro da totalidade que os organiza e lhes dá sentido. Daí a célebre máxima: “o todo é diferente da soma das partes” (Ribeiro, 2007). Uma gestalt, defendiam, é uma totalidade indivisível, articulada e irredutível: ao se fragmentar o fenômeno em pedaços isolados, perde-se justamente a sua essência.

Esse olhar encontrou ressonância no pensamento de Jan Smuts, criador do Holismo. Em Holism and Evolution (1926), Smuts propôs compreender a realidade como unidade indivisível. O termo “holos” – do grego, “todo” – traduz sua convicção de que não há processos isolados; tudo se entrelaça em uma rede dinâmica de relações. Assim, compreender um fenômeno em sua totalidade é mais revelador do que estudá-lo em partes separadas. Smuts rompeu com o mecanicismo, que considerava uma simplificação útil, mas superficial, defendendo que fosse atualizado por uma perspectiva holística. Nela, o ser humano não é reduzido a um aspecto isolado nem visto fora de seu ambiente, mas compreendido como um microcosmo inserido no macrocosmo, um todo dentro de um todo maior.

Esse pensamento dissolve dualismos clássicos como mente e corpo, dentro e fora, pessoa e mundo. Tudo é visto em inter-relação e interdependência. Como lembra Ribeiro (2005), o dualismo é fruto de uma tentativa de controle: “Dividimos para controlar melhor, e com isso perdemos a beleza e a riqueza da totalidade, que exige de nós humildade diante do mistério, o qual podemos chamar de relação” (p. 174). Desse modo, a pessoa não é um órgão, um sintoma ou uma patologia isolada, mas um ser integrado, em que tudo afeta tudo. A crítica às especializações excessivas também vai nessa direção: se de um lado elas permitem aprofundar o detalhe, por outro podem perder de vista o movimento vivo da totalidade.

Para Smuts, é a totalidade que explica as partes e não o inverso. Cada parte só encontra sentido em uma estrutura maior que não apenas a conecta, mas transforma suas propriedades. O todo, portanto, é algo novo e distinto, com qualidades emergentes que não podem ser explicadas pela simples soma dos elementos. “O todo não é algo adicional às partes: ele é as partes em um definitivo arranjo estrutural […] Todos são dinâmicos, orgânicos, em evolução, criativos” (Smuts, 1996, p. 104).

Dessa visão derivam três princípios fundamentais do Holismo: tudo deve ser analisado como totalidade, tudo está em relação e tudo muda (Ribeiro, 2011). Esses princípios se complementam: ao ampliar o olhar, reconhecemos a interdependência entre as coisas; e essa interdependência nos mostra que qualquer mudança em uma parte reverbera no todo, exigindo reorganização.

Smuts via essa dinâmica como intrínseca ao próprio cosmos, presente desde os átomos até a personalidade. A matéria, a vida e a mente seriam fases progressivas de um processo evolutivo universal. A matéria, composta por unidades de energia em movimento, já expressa interdependência e organização. A vida surge quando essas estruturas se organizam em células autorreguladoras, capazes de sustentar e perpetuar processos vitais. A mente, por sua vez, representa o ápice: é a emergência da autoconsciência, da liberdade e da criatividade, funcionando como o “órgão do holismo”, por meio do qual o universo se reconhece.

Nessa perspectiva, a mente não apenas resulta da vida, mas a transcende, conferindo ao ser humano a possibilidade de reinterpretar o ambiente e expressar sua singularidade criativa. Para Smuts, essa visão ultrapassa a ciência: trata-se de uma contemplação espiritual e ética da interconexão de tudo. O universo, compreendido como uma grande totalidade viva, não é um espaço em que o ser humano está inserido, mas do qual ele é expressão. Como escreve Ribeiro (2021), existe uma única energia que atravessa todos os seres e se manifesta de modos singulares, podendo ser chamada de movimento, emoção, vida ou alma.

A evolução, assim, não é apenas mudança, mas criação. Quando uma parte se transforma, o todo se reorganiza; e essa reorganização, por sua vez, renova as partes, gerando um processo contínuo de síntese. Cada totalidade menor se ajusta tanto às suas partes constituintes quanto às demais totalidades com as quais se relaciona. Smuts resume: “Evolução não é meramente um processo de mudança, de reagrupar o velho em novas formas; ela é criativa” (1996, p. 89).

O Holismo, portanto, é a força integradora que articula matéria, vida e mente como totalidades em interdependência, fazendo do universo um organismo vivo em constante atualização. Ao reconhecer essa perspectiva, não apenas superamos visões fragmentadas, mas nos colocamos diante da riqueza da totalidade, com a humildade de quem se sabe parte de um mistério maior e em movimento.

O sentido, portanto, não emerge das partes para o todo, mas do todo para as partes. Com base nessa premissa, Smuts indicou que as investigações deveriam considerar todos os dados – quantitativos e qualitativos – como relevantes para a análise, sempre a partir de uma perspectiva integrada (Müller-Granzotto; Müller-Granzotto, 2007). Essa orientação ecoa na prática da Gestalt-terapia, em que o terapeuta não observa o cliente como uma entidade isolada, mas como alguém constituído em constante relação com seu campo, atravessado por demandas internas e externas, histórias, vínculos e expectativas. Ignorar essa visão seria diluir a complexidade da experiência humana e reduzir o cliente a recortes artificiais, o que inevitavelmente resultaria em intervenções desconectadas da realidade viva do encontro terapêutico (Perls; Hefferline; Goodman, 1997).

Assim, nenhuma manifestação – seja um estresse persistente, uma ansiedade sufocante ou a dificuldade de relaxar – pode ser reduzida a uma resposta interna desconectada do mundo. Sempre há um contexto sustentando e nutrindo a experiência. Se alguém apresenta medo crônico de se expressar, talvez tenha vivido em ambientes onde sua voz foi sistematicamente silenciada.

Na clínica, é comum que clientes tragam queixas isoladas, sem perceber conexões entre estados emocionais, respostas corporais, padrões de relacionamento e contextos ambientais. Uma dor de cabeça, por exemplo, pode aparecer logo após uma situação de injustiça em que a raiva foi reprimida. Para o cliente, os fenômenos parecem desconexos, mas seu corpo conta outra história: a energia da raiva, impedida de se expressar, tensiona músculos e gera a dor. Nesse momento, o terapeuta pode oferecer um insight simples e potente: “O que será que seu corpo está fazendo com essa raiva que não pôde sair?”.

Outro exemplo é o de alguém que, após uma crise emocional intensa, recebe inesperadamente a atenção dos pais, até então distantes. Pela primeira vez em muito tempo, sente-se cuidado. Seu organismo, em silêncio, parece gritar por presença, mas a ligação entre crise e necessidade de afeto não é evidente para ela. Ao se dar conta disso, abre-se a possibilidade de refletir: “Como seria receber esse cuidado antes de precisar chegar a esse ponto?”.

Essas dinâmicas se repetem em diferentes formas: a mulher que se sente constantemente exausta por viver para os outros, o homem que se perde em relacionamentos ao se moldar demais ao parceiro, a pessoa que acredita ser “azarada” no trabalho mas foge das oportunidades por medo de falhar. A experiência é fragmentada; o cliente não percebe os fios que conectam corpo, emoção e contexto. O terapeuta, atento, recolhe essas pistas e as devolve de modo acessível, ajudando a reconstruir a unidade da experiência. O holismo nos lembra que só no todo os sintomas e ajustamentos encontram seu verdadeiro significado. Quando essas conexões se revelam, algo se reorganiza: “Ah… então é isso que está acontecendo comigo!”.

Nada ocorre no vácuo; toda experiência emerge numa trama relacional. Cada atitude carrega um esforço adaptativo que, em algum momento, foi essencial para a sobrevivência. Mas o campo muda, e muitas vezes a pessoa continua presa a ajustamentos que já não fazem sentido. Cabe ao terapeuta ajudar o cliente a perceber que cada figura que emerge na terapia é, na verdade, um convite à compreensão e ao contato.

Figura na clínica

Em cada encontro clínico há sempre uma figura emergente – uma gestalt inacabada que clama por finalização através do contato. A figura é aquilo que se destaca no momento: pode ser o próprio sintoma, uma força que anuncia mudança ou um bloqueio que resiste a ela. O que emerge revela, naquele instante, o que precisa ser integrado, nomeado, experimentado. Por isso, a figura não é um fim em si mesma, mas um convite para aprofundar o contato e abrir espaço para novas formas de existir.

Essa figura nunca é fixa. Ela se reorganiza continuamente conforme as necessidades do organismo e as influências do ambiente. Pode aparecer como um desejo de afeto não reconhecido, uma queixa sobre um colega de trabalho, uma angústia financeira, a ansiedade diante de uma apresentação, o medo de se expressar plenamente, uma postura de vitimização, uma mudança súbita de assunto, uma autocobrança que tolhe a espontaneidade. Cada uma dessas manifestações é um chamado para ser vivido e integrado. Ignorá-las é perder a oportunidade de acessar o que verdadeiramente pulsa no presente.

A terapia, assim, se torna o espaço onde o inacabado pode ganhar contorno e se transformar. A cada sessão, o que emerge traz um convite para continuidade – figuras antes urgentes podem se dissolver, cedendo lugar a outras experiências. Esse movimento é sinal de progresso: a flexibilidade na formação de figuras. O cliente, antes fixado em um único ponto, passa a transitar com mais fluidez entre aspectos de sua experiência, aprendendo a permitir que cada figura cumpra seu papel e abra espaço para o novo.

Mesmo quando não é verbalizada, a figura se insinua na relação terapêutica: no tom de voz, na respiração, na tensão de um gesto, na evasão de um olhar. Ela se manifesta no corpo e na atmosfera do encontro, no aqui e agora. Nesse jogo sutil, cabe ao terapeuta estar presente, atento, sem forçar interpretações, mas abrindo-se para escutar o que se anuncia.

Ente e ser

A distinção entre ente (seiendes) e ser (sein) é central para compreender a filosofia heideggeriana e, ao mesmo tempo, ilumina de modo fecundo a prática da Gestalt-terapia. O ente diz respeito a tudo aquilo que pode ser objeto de experiência ou pensamento: objetos, fenômenos, animais, pessoas, tudo aquilo que se apresenta ao nosso olhar e pode ser descrito, classificado, mensurado. Quando você vê uma cadeira e pode especificá-la em termos de forma, peso e função, está diante de um ente, algo que simplesmente “é” e que pode ser tratado de modo instrumental. Essa investigação do ente, chamada de análise ôntica, debruça-se sobre as propriedades e características concretas das coisas, mas tende a permanecer em uma abordagem superficial e classificatória.

O ser, por sua vez, refere-se à dimensão fundamental que possibilita a existência de qualquer ente. Não se trata de uma propriedade ou atributo, mas do sentido que emerge na relação entre indivíduo e mundo. Ler um livro, por exemplo, não é apenas um ato físico; envolve pensamentos, emoções e reflexões que revelam um modo de ser específico. A análise ontológica, nesse caso, busca compreender não apenas o “o quê” de algo, mas o “como” e o “para quê” da experiência, iluminando o significado e a essência que sustentam nossa existência. O olhar ôntico se ocupa do ente em suas propriedades; já a análise ontológica busca o sentido, investigando não apenas o que existe, mas como e para quê existe.

Heidegger alertava que a tradição filosófica e o positivismo haviam negligenciado essa dimensão, reduzindo o ser humano a mero ente, objeto de estatísticas, tipologias e generalizações. Tal redução, segundo ele, esvaziava a singularidade da experiência, tratando a pessoa como coisa entre coisas. Em oposição, propôs uma investigação ontológica, capaz de considerar o humano em sua abertura para o mundo, como único ente que pode interrogar a si mesmo e colocar em questão seus modos de ser. Somos, contudo, os únicos entes capazes de interrogar o próprio ser, refletindo sobre como existimos. Por isso, não podemos ser compreendidos apenas a partir de categorias superficiais, mas a partir de uma investigação ontológica, que questione o sentido do nosso ser.

Leitura clínica

Na clínica gestáltica, essa dimensão ontológica é essencial. O terapeuta busca desvelar o sentido da figura emergente, reconhecendo que ela é expressão de um campo – da relação do cliente com seu mundo. Essa escuta requer um olhar holístico, atento não só ao que aparece, mas ao horizonte de significados que o sustenta.

Foi nesse espírito que psiquiatras como Minkowski, Binswanger e Boss trouxeram a filosofia heideggeriana para a clínica. Minkowski enfatizou a vivência como chave para compreender o sofrimento humano; Binswanger descreveu o psicoterapeuta como um “guia de montanha”, que caminha junto ao cliente em sua travessia existencial; Boss, em intenso diálogo com Heidegger, criticou a psicanálise por estar presa a uma metapsicologia abstrata, defendendo uma clínica centrada na singularidade da experiência. Sartre, por sua vez, também questionou a psicanálise tradicional, deslocando o olhar para o futuro e para as escolhas em aberto, sem desconsiderar o peso da história.

Essas contribuições dialogam profundamente com a Gestalt-terapia, sobretudo no entendimento do self e do ajustamento criativo. O self não é uma entidade fixa, mas um acontecimento de mundo, uma expressão viva e relacional que emerge na fronteira de contato entre indivíduo e ambiente. O ajustamento criativo, por sua vez, é mais do que adaptação funcional: é ato existencial, expressão da liberdade do ser humano ao responder às demandas do campo de forma singular, integrando o novo e reinventando-se a cada encontro.

Na clínica, isso significa que sintomas como a ansiedade não são encarados como falhas a serem eliminadas, mas como manifestações de um esforço legítimo de autorregulação, ainda que limitado ou disfuncional. Cada expressão é vista como um ajustamento criativo, que pode ser explorado em busca do sentido que carrega. O terapeuta, ao invés de encaixar a pessoa em explicações universais, acompanha-a no desvelar de seus significados, ajudando-a a transformar padrões rígidos em respostas mais flexíveis, autênticas e responsáveis.

Assim, a Gestalt-terapia se alinha à crítica heideggeriana ao naturalismo reducionista e se fortalece ao integrar o pensamento fenomenológico-existencial. Ela não se contenta em classificar o ente, mas busca compreender o ser que se manifesta em cada gesto, emoção ou escolha. Ao escutar o cliente como um ser-no-mundo singular, a terapia se torna espaço de descoberta e criação, onde cada ajustamento criativo é reconhecido como um modo de existir e, ao mesmo tempo, uma oportunidade de florescimento.

Sintoma

O sintoma, por sua vez, é compreendido como uma forma cristalizada de bloqueio do contato, mas também como expressão de uma energia que não encontrou um canal legítimo para emergir. O excitamento, força vital que impulsiona a experiência, quando negado, fragmenta-se e se descarrega de modo distorcido: volta-se contra o indivíduo, gerando sofrimento; projeta-se sobre os outros, criando conflitos; ou escoa por válvulas de escape, sem resolver sua origem.

A Gestalt-terapia entende que os sintomas são tentativas de autorregulação. Eles expressam o melhor ajustamento possível dentro das condições disponíveis. Eliminá-los de imediato pode ser não apenas ineficaz, mas arriscado, pois priva a pessoa do recurso que encontrou para sobreviver à sua dor. Quando silenciamos o sintoma sem compreender seu sentido, ele tende a reaparecer sob outras formas, como um rio que desvia seu curso diante de obstáculos.

Mas quando o sintoma é escutado, acolhido em profundidade, ele pode cumprir seu propósito e conduzir ao essencial. A ansiedade, por exemplo, deixa de ser apenas um problema a ser corrigido e passa a ser compreendida como expressão significativa do ser no mundo. O terapeuta investiga seu contexto, o que ela evita e qual vulnerabilidade protege. Nesse olhar fenomenológico, o sintoma revela forças presentes no campo e denuncia o conflito que bloqueia o ajustamento criativo.

Em uma abordagem positivista, a ansiedade pode ser reduzida a um conjunto de sintomas observáveis, passíveis de diagnóstico e de tratamento padronizado. Já em uma perspectiva fenomenológico-existencial, a ansiedade é vista como um modo de ser, uma resposta significativa que revela como o indivíduo se relaciona com sua existência. Perguntas como “O que você sentiu naquela situação?”, “Que sentido essa experiência tem para você?” ou “O que estava em jogo naquele momento?” não apenas descrevem, mas desvelam o significado subjacente à vivência, ajudando a pessoa a reconhecer a função que o sintoma exerce em sua história e a possibilidade de se reposicionar diante dele.

Assim, o sintoma deixa de ser inimigo e se torna chamado: ele aponta para algo que precisa ser reorganizado na experiência. Ele denuncia um bloqueio de contato que impede uma mudança necessária. O desconforto, então, transforma-se em convite ao crescimento.

Esse processo exige ampliação da awareness, um dar-se conta integral do que emerge – pensamentos, emoções, sensações e comportamentos no aqui e agora. Como o sintoma geralmente encobre algo negado, a awareness se torna oportunidade de integração, reorganizando o campo e desbloqueando novas possibilidades de ser.

O processo terapêutico não é, portanto, um combate contra sintomas, mas um caminho de reintegração. O sintoma é vestígio de algo que clama por reconhecimento. A transformação acontece quando ele se torna desnecessário – não porque foi arrancado à força, mas porque novas formas de ajustamento se tornaram possíveis. O que antes era um conflito congelado vira movimento; emoções podem ser sentidas e integradas, em vez de reprimidas. Nesse ponto, podemos falar em cura: a possibilidade de viver com mais inteireza, flexibilidade e presença, permitindo que a vida siga seu fluxo criativo.