Teoria Organísmica de Goldstein

Surge então uma pergunta essencial, que atravessa o campo da teoria e ecoa na prática clínica: como nos orientamos no processo de ajustamento à vida? É nesse ponto que desponta, como um farol conceitual, a noção de autorregulação, desenvolvida a partir das proposições do neurologista Kurt Goldstein (1878–1965), criador da Teoria Organísmica (Alvim, 2007; Lima, 2013).

Goldstein dirigiu um instituto de renome, que reunia hospital, centro de pesquisa e formação em neurologia (Holanda, 2014). Ali, valendo-se das ferramentas conceituais da Psicologia da Gestalt e do Holismo, realizou investigações que atravessaram os muros da medicina e influenciaram diversos campos do saber (Lima, 2013; Holanda; Moreira, 2017). Em contraposição à concepção atomístico-mecanicista, que fragmentava o ser humano em funções isoladas, Goldstein propôs uma abordagem que tratava o paciente como um campo singular, dinâmico e interdependente. Em sua visão, cada dado clínico não era uma peça solta, mas parte de uma totalidade complexa a ser compreendida em sua relação viva com o ambiente (Müller-Granzotto; Müller-Granzotto, 2007).

Durante a Primeira Guerra Mundial, ao observar soldados com lesões cerebrais, Goldstein notou que danos em áreas específicas do cérebro provocavam efeitos difusos, inclusive em regiões aparentemente não relacionadas com o ponto de impacto. Essa constatação o levou a conceber o organismo como uma unidade integrada, na qual qualquer perturbação reverbera no todo (Holanda; Moreira, 2017).

Dessa compreensão nasce a definição de pessoa como organismo – uma totalidade inseparável, não redutível à soma de órgãos ou funções, nem isolada de seu meio (Lima, 2013). O organismo não é apenas corpo, nem apenas mente, mas um sistema em constante interação com o ambiente – um sistema organismo-meio, no qual toda parte influencia e é influenciada pelo todo (Lima, 2008).

Figura-fundo no organismo

Dessa concepção emergiu o conceito de “centragem”, uma teoria segundo a qual, ao ser mobilizada para uma função específica, uma região do corpo se torna “figura”, enquanto as demais áreas recuam para compor o “fundo” (Ribeiro, 1985). Essas regiões de fundo, embora não estejam diretamente envolvidas na ação principal, oferecem suporte estrutural e energético indispensável para a realização da função. A energia, portanto, não permanece estática, mas se redistribui continuamente conforme as exigências do momento (Ribeiro, 2016), revelando um organismo dotado de uma inteligência adaptativa capaz de priorizar, sustentar e restaurar seu equilíbrio.

Ilustremos com um caso clínico: certa vez, um cliente foi encaminhado por sua dentista, após repetidas tentativas frustradas de cicatrização de um implante. No processo terapêutico, emergiu o sofrimento decorrente de um término amoroso recente, que consumia grande parte de sua energia. À medida que os sentimentos de culpa e perda foram elaborados, a angústia cedeu espaço e, simultaneamente, a cicatrização começou a ocorrer. O que antes era figura dominante – a dor emocional – pôde então ceder lugar à reparação fisiológica. Aqui, a interdependência entre corpo, mente e emoção manifesta-se de forma inequívoca.

Goldstein ainda observou que a emergência de uma figura não é aleatória: ela expressa uma sabedoria organísmica, uma inteligência espontânea que elege o que é prioritário para preservar ou restaurar a homeostase (Santos; Martins, 2016; Holanda; Moreira, 2017). Essa sabedoria mobiliza sensações, motricidade e cognição em prol da sobrevivência e do crescimento. Assim, Goldstein rompe com a concepção tradicional do arco reflexo, propondo um modelo em que tanto o sistema sensorial quanto o motor operam do cérebro para a periferia de forma coordenada e intencional (Perls, 2002).

Como ele mesmo afirma, “o significado da constelação de estímulos depende das condições concretas nas quais se encontra o organismo. Nesse sentido, não há, para o organismo, estímulos neutros, cuja ação provocaria sempre a mesma resposta, de maneira unívoca” (Santos; Martins, 2016, p. 103). Essa afirmação desestabiliza a lógica mecanicista e recoloca o ser vivo como sujeito ativo da experiência. O organismo molda os estímulos, reorganiza-os conforme suas urgências internas e externas, demonstrando uma notável capacidade de discriminação funcional.

Essa discriminação se expressa de forma pungente em situações-limite: há quem, mesmo ferido, atravesse um incêndio para salvar alguém que ama. A dor, embora presente, é momentaneamente marginalizada por uma prioridade maior. É o organismo decidindo onde investir sua energia vital.

Autorregulação organísmica

Cada organismo carrega um padrão próprio de organização, funcionando como um microcosmo regido por suas próprias leis (Alvim, 2007). Ele atua como centro de regulação interna, uma unidade inteligente que busca ajustar-se criativamente às perturbações que ameaçam sua integridade (Ribeiro, 1999; 2007; Holanda; Moreira, 2017).

É esse movimento que Goldstein denomina autorregulação: a capacidade espontânea do organismo de se reorganizar, de orientar-se em prol da redução de tensão, visando o funcionamento mais eficiente possível. Trata-se de um princípio inato, imanente à vida – presente em todos os seres vivos como impulso de preservação, adaptação e crescimento (Lima, 2013; 2014).

Belmino (2021, p. 50) sintetiza com precisão: “na leitura de Goldstein, a vida tenderia a um processo contínuo de autorregulação, ou seja, a um processo de adaptação, mas também de criação perante as diferentes situações concretas as quais ela se encontra em sua correlação primária com o ambiente.”

Silva e Alves (2020, p. 60) ampliam essa ideia ao sugerir que a autorregulação pode ser entendida como uma transposição do conceito de homeostase para uma abordagem holística do funcionamento humano. Nesse processo, o organismo reorganiza-se em busca de um equilíbrio funcional suficientemente saudável para responder às suas necessidades emergenciais.

Ao aprofundar seus estudos, Goldstein sistematizou cinco princípios fundamentais sobre a autorregulação:

(1) Ela é expressão do princípio holístico da vida, presente em todos os seres vivos, como uma inteligência primitiva e autônoma que não depende de operações mentais superiores (Müller-Granzotto; Müller-Granzotto, 2007).

(2) Ela pressupõe a interdependência com o meio, pois só é possível ajustar-se por meio de um acordo dinâmico com o ambiente – uma dança relacional que ocorre na fronteira entre organismo e mundo (Ribeiro, 1999).

(3) Manifesta-se em duas modalidades: autopreservação, voltada à manutenção da unidade e estabilidade; e autoatualização, que impulsiona o crescimento a partir da assimilação de experiências físicas ou mentais (Ribeiro, 1999; 2016; Perls, 1977).

(4) Em condições normais, predomina a autoatualização. Mas, diante de ameaças, o organismo prioriza a autopreservação – suspendendo temporariamente seu crescimento para proteger-se (Ribeiro, 1999).

(5) Por fim, a autorregulação conduz à autorrealização, entendida como expressão plena do ser em relação significativa com o mundo. Trata-se do florescimento da tendência criativa do organismo (Ribeiro, 1999; 2007; Lima, 2013).

Assim, compreendemos que a autorregulação não se limita a um retorno ao equilíbrio, mas se orienta à plena realização do ser, que cresce ao mesmo tempo em que se preserva. Como afirmou Ribeiro (1999, p. 107), “viver e crescer supõe, portanto, dois tipos de atividade: ir e ficar, gastar e economizar, agir e descansar.” Ou seja, a vitalidade não está em um extremo ou outro, mas no movimento que equilibra ambos.

A Gestalt-terapia herdou e aprofundou esse legado, compreendendo a autorregulação como processo contínuo de ajustamento criativo ao campo – esse tecido vivo da experiência imediata em que dimensões psicológicas e não-psicológicas se entrelaçam.

Goldstein classifica os comportamentos humanos em dois tipos: ordenado e desordenado. O comportamento ordenado emerge como resposta coerente à prioridade situacional – à figura dominante do momento – e se expressa com fluidez, sintonia e sensação de realização (Ribeiro, 1985). Já o desordenado rompe com essa sintonia, revelando um organismo em choque, desorganizado, hesitante, e muitas vezes angustiado (Holanda; Moreira, 2017).

Teoria do Campo de Lewin

É nesse ponto que se integra a contribuição da Teoria do Campo, desenvolvida por Kurt Lewin (1890–1947). Inspirado pelos princípios de totalidade da Psicologia da Gestalt, Lewin expandiu-os para investigar o comportamento humano, enfatizando a influência decisiva do contexto social e situacional.

Sua teoria sustenta que todo acontecimento deve ser examinado dentro do campo em que ocorre: uma totalidade de forças interdependentes que se organizam dinamicamente no presente. Essas forças abrangem necessidades, expectativas, receios, pressões externas e influências culturais, que interagem entre si. O termo “campo”, emprestado da física, expressa justamente essa interdependência: cada elemento afeta e é afetado pelo todo.

Espaço vital

Para Lewin, o comportamento é função do espaço vital – a combinação entre pessoa e meio psicológico. A pessoa inclui não apenas corpo e mente, mas também história, objetivos e influências socioculturais. O meio psicológico, por sua vez, refere-se à forma singular como cada indivíduo percebe e interpreta o ambiente. O espaço vital, portanto, não é o mundo objetivo, mas a realidade vivida no aqui-agora.

Nessa trama, passado e futuro não aparecem como causas lineares do presente, mas como forças ativas que influenciam a experiência atual. O presente é o ponto de encontro onde essas temporalidades se entrelaçam.

Lewin também descreveu a pessoa como composta por microrregiões periféricas e centrais, acessíveis ou não à consciência conforme a relação com o meio. Entre pessoa e meio operam vetores de força, definidos por sua valência: positiva quando atraem, negativa quando repelem. Essas forças, embora não físicas, moldam percepções e escolhas, sustentando que o comportamento só pode ser compreendido em função do campo vivido no momento.

Aplicação clínica

Essa visão ilumina a clínica gestáltica: o comportamento não é resultado de traços internos isolados, mas expressão da interação entre pessoa e campo. Assim, sintomas e padrões não são vistos como falhas individuais, mas como sinais de desequilíbrios no sistema organismo-meio. Muitas vezes, o “paciente identificado” é apenas quem expressa mais sensivelmente uma disfunção de todo o campo. Assim, não se pode separar organismo e ambiente; ambos formam uma unidade.

Na prática clínica, esse enfoque permite investigar as forças presentes no espaço vital do cliente. Um adolescente ansioso diante de atrasos em mensagens, por exemplo, pode estar reagindo a um campo marcado por vivências de abandono, carências afetivas e experiências de rejeição, que impregnam sua percepção atual e distorcem novos contatos. O trabalho terapêutico consiste em explorar essas forças, torná-las conscientes e possibilitar novos ajustamentos criativos.

Do mesmo modo, compreender o campo de outra pessoa pode ajudar o cliente a ressignificar experiências passadas. Por exemplo, um filho ao analisar a negligência de uma mãe deprimida no pós-parto, torna-se capaz de contextualizar esse comportamento dentro de um fundo mais amplo de sofrimento e limitações, abrindo espaço para uma compreensão mais compassiva.

A mudança, nesse horizonte, não é correção imposta, mas emergência do que já pulsa no campo. O terapeuta não “produz” a cura, mas sustenta o espaço onde forças interrompidas podem completar seus ciclos, transformando-se em contato autêntico. A cura acontece quando há presença, silêncio e disponibilidade para que o novo surja.

Assim, a Teoria Organísmica e a Teoria de Campo oferecem à Gestalt-terapia uma visão integrada do ser humano: organismo e ambiente como uma unidade viva, autorregulada e criativa. Cada contato bem-sucedido reorganiza o campo, e cada experiência concluída oferece apoio para os desafios seguintes. A clínica, nesse sentido, é o espaço onde essa dança contínua entre pessoa e mundo pode ser reconhecida, sustentada e renovada.