As formas de bloqueio que encontramos na clínica são muitas, e lidar com elas exige mais do que classificá-las como sintomas. É preciso compreender sua função, aquilo de que protegem e o preço que cobram. Afinal, cada bloqueio surge como uma tentativa de evitar o vazio e de proteger a vulnerabilidade. Contudo, essa liberdade existencial, que nos permite escolher, não vem sem custo: cada decisão implica abrir mão de inúmeras outras possibilidades, e isso nos confronta com a angústia das consequências inevitáveis.

O terapeuta fenomenológico-existencial, ao invés de reduzir sintomas a explicações causais simplistas, busca explorar o significado das experiências vividas. Perguntas como “Como foi vivenciar isso?”, “Que sentido você atribuiu a essa atitude?” ou “O que desejava naquele momento?” ajudam o cliente a trazer à luz aspectos ocultos de sua intencionalidade. É nesse ponto que a distinção heideggeriana entre ente e ser se torna fecunda: o ente corresponde ao que pode ser descrito objetivamente — ações, papéis, tarefas — enquanto o ser remete ao significado que emerge do modo como nos relacionamos com o mundo. No consultório, isso significa perguntar não apenas o que alguém faz, mas também como e para quê o faz. Um cliente pode dizer que seu trabalho é “cansativo”, mas a investigação revela que, mais do que fadiga física, trata-se de uma desconexão com seus valores, um desalinhamento que mina sua vitalidade.

Na clínica gestáltica, partimos do princípio de que todo ente esconde um ser — e é justamente esse ser que sustenta o ente. Aquilo que chamamos de sintoma, bloqueio ou comportamento disfuncional é apenas a face visível de algo mais profundo, mais essencial. A postura fenomenológico-existencial que orienta nossa escuta nos convida a ir além daquilo que se mostra no nível das queixas ou repetições. O ente — aquilo que aparece no discurso, na postura, nos padrões — é apenas a superfície. O que realmente nos interessa é o ser que o habita, que o anima, que o sustenta desde dentro.

Não é suficiente saber o que a pessoa faz; é necessário compreender como e para quê ela faz. Um cliente pode, por exemplo, dizer que procrastina. Mas o que esse comportamento revela? Talvez por trás desse ente, se esconda um ser que teme falhar. Um ser que, em algum momento da vida, foi punido por errar ou aprendeu que não podia desejar demais. Se nos apressamos em atacar o sintoma, tentando extirpá-lo, corremos o risco de reforçar a lógica da rejeição que o gerou. Combatemos aquilo que ainda não foi compreendido, e com isso, perpetuamos o afastamento do ser.

É preciso lembrar que o sintoma tem uma função. Ele não está ali por acaso. O ser que o sustenta tem sua história, seus afetos, suas faltas e os modos próprios de se proteger. Mesmo aquilo que hoje é visto como obstáculo, um dia foi recurso. Ao invés de tentar apagar o que está “errado”, a clínica gestáltica propõe que acolhamos o que ainda não foi ouvido. O espaço terapêutico se torna, assim, lugar de revelação, onde podemos perguntar: o que esse sintoma está tentando dizer? Que necessidade legítima ele tentou atender? Que parte esquecida de mim se revela por trás dessa armadura?

À medida que o cliente se aproxima de seu ser — esse núcleo sensível, legítimo e muitas vezes esquecido — ele começa a encontrar formas de viver que já não exigem os velhos padrões. A mudança, então, não acontece pela força, mas pela superação orgânica: o sintoma deixa de ser necessário porque ele já cumpriu sua missão. Quando o ser é reconhecido e validado, novas possibilidades de expressão se tornam disponíveis. O sofrimento se torna menos rígido, o gesto menos automático, e a vida encontra uma nova configuração, mais coerente, mais inteira.

Por isso, na Gestalt-terapia, não tentamos consertar o ente. Não o combatemos. Nós o escutamos — com presença, com tempo, com coragem — até que o ser apareça. E quando esse ser é respeitado, ele se transforma em guia de uma nova forma de existir, mais criativa, mais verdadeira. A verdadeira transformação nasce desse encontro: não da correção de um erro, mas da escuta amorosa de uma essência que sempre esteve ali, pedindo reconhecimento. O gesto que antes parecia problemático passa a ser entendido como expressão legítima de um ser que tentava, de algum modo, sobreviver. E então, nesse campo de escuta e presença, o cliente descobre que já pode ser diferente — não porque foi forçado a mudar, mas porque finalmente compreendeu quem ele é.

O impasse que se instaura diante dessa tensão costuma ser vivido com sofrimento intenso. Para aliviá-lo, muitas vezes a pessoa recorre a estratégias de evitação: anestesiar emoções, distrair-se da dor ou minimizar conflitos. Quando cristalizadas, essas estratégias tornam-se padrões neuróticos que, como uma armadura, protegem temporariamente, mas ao mesmo tempo limitam o contato pleno com a experiência e bloqueiam o crescimento. Assim, a neurose é entendida na Gestalt-terapia não como doença, mas como um ajustamento criativo diante da vulnerabilidade, um recurso que foi funcional em algum momento, mas que se torna disfuncional quando rigidamente repetido.

Quatro consequências principais explicam como esse ciclo se perpetua: primeiro, a rigidez e a previsibilidade, que levam o sujeito a responder de modo estereotipado e obsoleto; segundo, o estado de alerta constante, que distorce a percepção e alimenta atitudes precipitadas; terceiro, o afastamento das necessidades autênticas, já que o foco se desloca de desejar para evitar; e, por fim, a recusa em tomar plena consciência da experiência, o que traz alívio imediato, mas mantém a pessoa vulnerável. Perguntas terapêuticas como “O que você está evitando sentir agora?” podem abrir espaço para uma nova awareness, revelando que o impasse não é apenas obstáculo, mas também porta de transformação.

Sustentar o vazio é um desafio central. Quando o cliente aprende a tolerar a incerteza, descobre que o vazio não é ausência, mas potencialidade. Daí nasce o conceito de vazio fértil, núcleo da Gestalt-terapia: um espaço em que padrões rígidos podem ser abandonados e novas formas de ser emergem. Fritz Perls enfatizava que não se trata de uma simples mudança, mas de uma transformação radical em que o indivíduo se reconecta com vitalidade e espontaneidade. Nesse processo, o papel do terapeuta é acompanhar sem dirigir, sustentando o ritmo do cliente. A chamada indiferença criativa possibilita esse acompanhamento, criando um espaço seguro em que o novo possa surgir. Muitas vezes, apenas estar presente junto ao desconforto já abre caminho para algo inédito. Quando o cliente diz: “Eu não sei o que fazer”, o terapeuta pode responder: “E se o não saber fosse o começo de algo importante?”. Essa abertura para o desconhecido favorece o ajustamento criativo.

A ansiedade, na perspectiva gestáltica, pode ser compreendida como o mal-estar do excitamento contido: a energia vital que deveria se lançar em direção ao contato e à autoatualização acaba bloqueada pela autopreservação. Quanto menor o autoapoio, mais vulnerável a pessoa se sente; quanto mais vulnerável, mais bloqueia o contato; e, ao bloquear, retira cada vez mais energia de si mesma. Sentir, nesse contexto, é permitir-se ser tocado, processar e destilar o mundo dentro de si. Quando esse fluxo se interrompe de modo repetitivo, a vida passa a ser conduzida no piloto automático, até que, em algum momento, torna-se necessário parar, reconhecer o que acontece e assumir a responsabilidade pelas próprias escolhas.

Na perspectiva da Gestalt-terapia, a ansiedade não é um inimigo a ser eliminado, mas um fenômeno existencial que surge quando nos deparamos com a tensão entre o presente e o futuro. Ela é, em essência, a antecipação de uma situação ainda não vivida, um descompasso no fluxo do contato em que a energia vital se mobiliza antes que haja um objeto ou uma situação concreta com a qual possa se engajar. Nesse movimento, o excitamento que deveria alimentar a ação criativa permanece suspenso, projetado em imagens e expectativas que nos afastam do aqui e agora. Por isso, a ansiedade é o sinal de um campo em movimento, mas que não consegue se realizar no contato pleno; é como um rio que encontra uma represa e se acumula, gerando pressão.

Quando pensamos na ansiedade em diálogo com o conceito de alienação, percebemos que ela frequentemente se intensifica justamente porque nos afastamos de nós mesmos. Alienar-se significa perder o contato com a própria experiência imediata, fragmentar-se diante das forças do campo e, muitas vezes, sustentar-se em introjetos rígidos ou padrões de resposta que já não condizem com a realidade atual. A pessoa ansiosa pode sentir que sua vida escapa de suas mãos porque, em vez de habitar a experiência presente, se desloca para o futuro imaginado ou para exigências herdadas que lhe soam inescapáveis. Nesse sentido, a ansiedade é também um efeito da alienação: quanto mais distante do contato autêntico com o que se é e do que realmente se apresenta, maior será o vazio preenchido por fantasias de catástrofe, fracasso ou inadequação.

Por outro lado, se a alienação gera ansiedade, a integração abre caminhos para transformá-la. Integrar, na Gestalt-terapia, significa reunir as partes cindidas, acolher tanto as forças que desejam avançar quanto aquelas que resistem, e devolver ao self a capacidade de responder criativamente. Quando a pessoa consegue se apropriar de suas necessidades, reconhecer seus medos e ajustá-los à situação presente, a ansiedade deixa de ser paralisante e se converte em energia disponível para o contato. Ela não desaparece, mas se transforma em força vital que anuncia o novo e impulsiona para a criação.

Assim, na clínica gestáltica, o trabalho não é eliminar a ansiedade, mas compreendê-la como um fenômeno de campo que sinaliza tanto a alienação quanto a possibilidade de integração. A ansiedade revela onde o contato foi bloqueado e onde o self se perdeu de si mesmo; mas também aponta para a potência de reencontro, pois cada tensão acumulada pode se tornar o motor de uma nova forma de estar no mundo.

Entre os fatores que podem interromper o fluxo saudável do contato estão os traumas. Joyce e Sills (2016) descrevem que, quando uma criança enfrenta situações que excedem sua tolerância afetiva — seja por invasão repentina, como em um assalto, seja por negligência de necessidades vitais, como a falta prolongada de amamentação — o self é tomado por uma sensação avassaladora. O organismo, então, responde com hiperexcitamento, acionando o sistema nervoso simpático e desencadeando reações de luta, fuga, agitação, vigilância e pânico; ou com hipoexcitamento, quando o sistema parassimpático provoca retração, dessensibilização e paralisia. Em ambos os casos, a gestalt fica inacabada, gerando o que chamamos de trauma. Como lembram Perls, Hefferline e Goodman (1997), funções emergenciais como ocultação e alucinação podem ser respostas temporariamente saudáveis em contextos de perigo, mas quando esse padrão se repete de modo crônico, abre-se caminho para a neurose.

A neurose, nesse sentido, surge como um desequilíbrio persistente no campo pessoa/mundo. Não se trata de um único episódio traumático, mas da repetição de padrões em que o ritmo da criança não é respeitado, acumulando frustrações de baixo grau que nunca encontram relaxamento pleno. Perls, Hefferline e Goodman (1997) descrevem esse estado como uma “emergência crônica de baixa intensidade”, na qual a vigilância se mantém sem que haja possibilidade real de descarga ou assimilação. A atenção se afasta do corpo, diminuindo a percepção de si e intensificando a percepção de ameaças externas, mesmo inexistentes. Com isso, estabelece-se uma prontidão habitual para fugir, mas sem liberar a tensão, cristalizando um modo protetivo e automatizado de existir.

Goldstein (1934/1995) chama esse tipo de situação de “catastrófica”: quando as capacidades de autoatualização são descompassadas em relação às exigências do meio, a pessoa passa a evitar até mesmo circunstâncias antes familiares. Nesse processo, reduz seu mundo e tende a buscar apenas situações que lhe demandem pouco. É por isso que o adoecimento não pode ser explicado por uma única causa. Como afirma Pinto (2021), trata-se de uma cocriação lenta, entrelaçada de fios históricos, genéticos, ambientais, afetivos e existenciais, que formam uma trama única, impossível de se repetir.

Ainda que muitos padrões se estabeleçam na infância, a neurose também pode surgir em outros momentos da vida, como em episódios repetidos de bullying na adolescência ou em rupturas amorosas na vida adulta. Na bibliografia gestáltica, três componentes são descritos no desenvolvimento neurótico: a opressão, a superproteção e as inibições antropológicas. A opressão se refere ao excesso de frustração, enquanto a superproteção é o excesso de apoio. Ambas, quando repetitivas, comprometem o desenvolvimento humano (Perls, 1977; Perls, Hefferline e Goodman, 1997).

O contato, por sua vez, é ação fenomenológica: identificamos uma necessidade, mobilizamos energia, encontramos o meio, assimilamos o que dele vem e nos transformamos no processo. Mas, ao sentir-se vulnerável, a pessoa aciona resistências que podem bloquear a experiência. Se houver suporte ambiental adequado, ela aprende que pode atravessar a tensão, internalizando recursos que servirão de apoio em futuras situações. Quanto maior o autossuporte, menor a dependência de suporte externo. O contato, então, exige um ritmo entre abertura e defesa, assistência e resistência. Quando esse equilíbrio se mantém, há crescimento; quando ele se rompe, surgem bloqueios ou até traumas.

Perls (2002) diferencia excitação de ansiedade. O primeiro é movimento vital: aumento do metabolismo, aceleração do pulso, respiração intensificada — sinais de energia disponível. A ansiedade aparece quando essa energia não encontra direção: quando não é aplicada no contato, fica represada, transformando-se em angústia. Para superá-la, é preciso colocar-se em ação, transformar ansiedade em medo concreto que pode ser atravessado. Fisher (2008) reforça: não se pode fugir e aprender ao mesmo tempo; é preciso permanecer no contato tempo suficiente para que o aprendizado se dê.

Assim, compreendemos que o bloqueio não interrompe o contato em si — já que ele sempre acontece —, mas impede que haja crescimento e assimilação. O contato passa a ocorrer de forma empobrecida, sem awareness, sem encontro com o real. Esse é o núcleo da autorregulação neurótica: um modo de funcionar que garante certa proteção, mas sufoca a autoatualização. Trata-se de um viver que se fixa na autopreservação, evitando a tensão e impedindo o novo.

A saúde, ao contrário, envolve flexibilidade, capacidade de criar e experimentar novos modos de estar no mundo. Joyce e Sills (2016) lembram que padrões repetitivos muitas vezes foram, no passado, as melhores estratégias de sobrevivência possíveis. Contudo, tornam-se rígidos quando passam a ser usados fora de contexto. A clínica gestáltica busca justamente abrir espaço para que a pessoa possa perceber tais padrões, reconhecê-los e experimentar novas formas de contato.

O crescimento humano se dá nesse balanço entre apoio ambiental e autoapoio. O ambiente nutritivo oferece as condições para que a pessoa desenvolva sua própria sustentação, aprendendo a confiar em seus recursos e a responder de modo criativo ao que surge. Quando esse suporte é inexistente ou excessivo, o contato se fragiliza: ou se estagna na confluência simbiótica, sem diferenciação, ou se fecha diante da frustração intensa. O bebê nasce em confluência, mas, pouco a pouco, utilizando sua agressividade saudável, vai se diferenciando, assimilando o que lhe serve e descartando o que não lhe serve. Essa é a passagem de um estado de pura introjeção para uma postura crítica, capaz de dar forma própria à experiência.

Apoiar não significa fazer pelo outro, mas estimular sua confiança para experimentar o próprio fardo e privilégio da existência. O caminho não está pronto antes; constrói-se ao caminhar, como lembra Jorge Ponciano. É no contato, e não na espera, que os recursos se descobrem e fortalecem. Isso exige, porém, que a experiência não ultrapasse a janela de tolerância do indivíduo, sob risco de se transformar em retração traumática.

Por fim, se adoecemos a partir da relação com o outro, também é através de relações nutritivas que nos curamos (Fukumitsu, 2022). A cura não é eliminar as tensões, mas reorganizar as forças, integrando bloqueios, resistências e frustrações como partes de um processo que pode ser ressignificado. Na troca com o mundo, aprendemos a dizer “não”, a diferenciar, a assumir escolhas. E, assim, a ansiedade deixa de ser um cárcere e torna-se novamente o excitamento vital que nos move em direção ao encontro e à criação de novas possibilidades de existir.

Falar de existência e autorregulação, na Gestalt-terapia, é falar de contato – o conceito mais amplo e fundamental dessa abordagem. É por meio do contato que as prioridades do campo emergem e encontram possibilidade de satisfação, impulsionando-nos a ajustamentos criativos diante das experiências que nos atravessam. Contato não é apenas interação, mas a própria expressão da vida em movimento. Ele organiza a experiência em ciclos: a necessidade mais excitada emerge como figura, sustenta-se até encontrar um caminho de realização e, uma vez satisfeita, retorna ao fundo, dissolvendo a gestalt e abrindo espaço para novas figuras.

A confiança da Gestalt-terapia na autorregulação repousa nesse processo. O cliente possui uma capacidade inata de perceber, discriminar e responder às situações, canalizando seu excitamento em direção à sobrevivência e ao crescimento. Mesmo quando há sofrimento, ele não é visto como falha, mas como tentativa de autorregulação em condições adversas. Até os bloqueios de contato cumprem essa função: são movimentos de autopreservação que, embora mantenham a vida, aprisionam o indivíduo em formas rígidas de ser, sacrificando a autoatualização.

Na prática clínica, o que encontramos é sempre alguém tentando lidar com vulnerabilidades. Quando a percepção do campo se estreita, a autorregulação se torna precária e a pessoa se refugia em ajustamentos cristalizados. Ela age repetindo padrões que, em algum momento, foram recursos vitais, mas que hoje já não dialogam com sua realidade. Age como sempre agiu, mas o presente exige outra coisa. Nesse enrijecimento, perde clareza tanto sobre suas forças internas – desejos, limites, propósitos – quanto sobre as forças externas – as demandas e recursos do ambiente. O mundo continua oferecendo alternativas, mas elas permanecem invisíveis ao olhar fixado no passado.

Esses ajustamentos cristalizados podem se expressar de diferentes formas: alguém que sempre cede sem perceber que pode dizer não, alguém que se mantém no papel de vítima sem enxergar outras possibilidades de se posicionar, alguém que perpetua hostilidade sem notar que pode relaxar e construir vínculos mais leves. São respostas que criam uma sensação de segurança, mas que se tornaram obsoletas e, por isso, não sustentam mais o crescimento. Nesses casos, a repetição funciona apenas como alívio temporário, semelhante a matar a fome com um pacote de chips: o sabor gera prazer momentâneo, mas a necessidade real permanece. O mesmo se dá quando alguém angustiado busca no álcool, na compulsão ou na fuga uma forma de anestesiar a dor. Por instantes, parece haver solução, mas logo a tensão retorna, exigindo novas descargas e perpetuando o ciclo.

Em contraste, o ajustamento criativo é aquele que nasce em sintonia com o campo presente. A pessoa reconhece suas necessidades e recursos, percebe o que se passa dentro e fora de si, e encontra saídas viáveis, respeitando seus limites e os da situação. Trata-se de uma resposta flexível, integrada, enraizada no concreto. Assim, diante de um problema familiar, por exemplo, em vez de buscar apenas fuga ou anestesia, a pessoa se abre ao diálogo ou encontra modos internos de elaboração. O ajustamento criativo dissolve a gestalt e permite avançar, fechando ciclos de contato e favorecendo o crescimento.

É nesse ponto que o papel do terapeuta se revela essencial. Ele não está ali para corrigir comportamentos, mas para ampliar a awareness do cliente. Quando uma compulsão é compreendida como tentativa de lidar com uma carência mais profunda, ela deixa de ser vista como simples defeito e passa a ser reconhecida como sinal de algo que precisa ser acolhido. O terapeuta não impõe mudanças; cria suporte para que o cliente perceba por si mesmo se os caminhos que repete ainda lhe servem ou se já não respondem ao presente. Muitas vezes, o cliente chega à terapia querendo “se livrar do problema” e recuperar um estado anterior, sem perceber que sua forma rígida de contato é que se tornou o verdadeiro impasse. O terapeuta não o convence a mudar, mas sustenta o processo para que ele mesmo descubra a necessidade de transformação.

O caso de Júlia ilustra bem esse processo. Ela chegou ao consultório dizendo: “Passo o dia assistindo séries. Sei que não me faz bem, mas não consigo parar”. Sua voz carregava culpa e medo de ser julgada. À medida que a conversa avançava, tornou-se claro que assistir séries não era apenas um hábito, mas um recurso precário para suportar frustrações e desqualificações constantes em sua vida. Quando se expunha diretamente à dor, entrava em colapso; desligar-se em narrativas alheias era sua forma de sobreviver. O problema, portanto, não era ver séries, mas o fato de essa ter se tornado sua única estratégia de regulação. Compreender isso devolveu-lhe dignidade e abriu espaço para novas possibilidades de ajuste. Ao fim da sessão, Júlia não saiu com uma regra de controle de tela, mas com um olhar renovado sobre si mesma, reconhecendo que sua conduta era menos um vício do que uma tentativa de continuar existindo. E a partir desse reconhecimento, o campo da mudança se abriu.

Esse exemplo mostra que o cliente chega à terapia porque algo em sua vida não flui, porque existe uma diferença entre o que vive e o que deseja viver. Às vezes, essa diferença se apresenta como incômodo difuso; outras, como dor gritante. Mas em ambos os casos, a busca é a mesma: um espaço para se compreender, reorganizar-se e encontrar sentido. A Gestalt-terapia, então, não se volta para o passado idealizado nem para futuros inatingíveis, mas para o aqui e agora, onde o sofrimento pulsa. O que fere não é o passado em si, mas o que dele não foi digerido. O que paralisa não é o futuro, mas a ilusão de que só ele trará salvação. Tudo sangra no presente, e é nele que se pode integrar, ressignificar e seguir.

Os padrões repetitivos, que funcionam como defesas contra a dor e o desconhecido, acabam por estagnar o desenvolvimento. Fugir do contato mantém a vida congelada, suspensa no medo. Mas na clínica gestáltica até mesmo a queda pode se transformar em chão: tropeços não são sinais de fraqueza, mas convites à awareness. Ser inteiro não é viver sem dor, mas estar presente diante do que emerge. É confiar que não precisamos controlar todos os degraus para seguir subindo. Basta um passo consciente no agora.

A Gestalt-terapia não exige perfeição, mas presença. Uma presença amorosa e radical, que acolhe a vulnerabilidade sem perpetuar a vitimização, que reconhece a queda sem transformá-la em fuga compulsiva, que pergunta com firmeza e ternura: “o que está ao seu alcance agora?”. É nesse agora que a história pode ser reescrita – não com promessas distantes, mas com escolhas pequenas, concretas e significativas. Escolhas que, ao invés de aprisionar na repetição, devolvem movimento e permitem que até mesmo o tropeço se torne caminho.

No fim, a incapacidade de completar situações inacabadas conduz à estagnação do desenvolvimento e favorece a neurose. Mas quando a experiência é atravessada e integrada, abre-se espaço para o crescimento. A questão, então, não é eliminar o medo, mas aprender a responder a ele. Porque é nessa resposta que se revela a possibilidade de viver com mais inteireza, autenticidade e liberdade.

Voltemos ao cliente sentado à nossa frente, buscando ajuda. Como podemos acompanhá-lo? Certamente não será prescrevendo respostas prontas ou explicações genéricas sobre as causas de seu sofrimento. A verdadeira ajuda não está em oferecer soluções externas, mas em restaurar a capacidade inata de autorregulação que, por alguma razão, tornou-se restrita, limitando sua possibilidade de responder criativamente ao presente. O papel do terapeuta não é corrigir ou moldar o cliente, mas caminhar ao seu lado na ampliação da percepção, ajudando-o a reconhecer as forças emergentes em seu campo e compreender como, e para que, ele mesmo impede que essas forças encontrem vias de expressão legítimas.

Não somos consertadores de pessoas defeituosas, porque não há nada a consertar. Há um ser humano atravessado por dores que ressoam em sua existência e por ajustamentos que, em algum momento, perderam fluidez. O que ele precisa não é de reparo, mas de um espaço seguro onde possa reencontrar caminhos de contato consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Se há sofrimento, é porque há divisão. Se uma pessoa simplesmente aceitasse ou rejeitasse algo, o fluxo da experiência seguiria sem embaraços. Mas quando forças opostas se confrontam no campo – uma impulsionando à mudança e outra resistindo, bloqueando o contato – o conflito se encapsula, transforma-se em incômodo difuso e gera tensão acumulada. O trabalho da terapia é exatamente o oposto desse amortecimento: em vez de sufocar o embate, abre espaço para que ele se revele, permitindo que a tensão se integre e o fluxo volte a acontecer.

Integrar é acolher novos elementos do campo e, ao mesmo tempo, reaproximar-se daquilo que um dia foi rejeitado. É assumir a responsabilidade de responder de maneira coerente à experiência tal como ela se apresenta, e não apenas ao que gostaríamos que fosse. A saúde não está em viver repartido entre impulsos contraditórios, mas em tornar-se inteiro, capaz de responder com flexibilidade às forças que atravessam o campo. O que vemos diante de nós, portanto, não é alguém “quebrado”, mas alguém cuja existência foi aprisionada em bloqueios de contato que cristalizaram sua experiência. Nosso trabalho é acolher a vulnerabilidade subjacente a esse adoecimento e oferecer suporte para que o fluxo interrompido reencontre seu curso.

Esse movimento não ocorre por imposição, mas pelo desvelamento do que já está presente, aguardando reconhecimento e integração. À medida que os bloqueios se dissolvem, a experiência se torna mais espontânea, mais fluida, e a pessoa passa a habitar sua vida com presença, coerência e liberdade. A Gestalt-terapia nos convida a estar com o que emerge no campo, a legitimar os ajustamentos que um dia garantiram estabilidade e, ao mesmo tempo, abrir espaço para novas formas de autorregulação. Se antes certos padrões foram necessários para sobreviver, hoje podem ser ressignificados, libertando o cliente para existir com mais autenticidade.

Ser terapeuta, então, é caminhar junto, sustentando um espaço em que o cliente possa olhar para si com honestidade, reconhecer seus padrões enrijecidos e experimentar novas possibilidades de estar no mundo. A terapia torna-se um espaço de redescoberta, não de retorno ao passado nem de busca por ideais inatingíveis, mas de construção de uma forma de ser que ressoe sua autenticidade, alinhada ao movimento vivo do campo. Nesse sentido, a psicoterapia é um resgate: da própria voz, do próprio sentir, do direito de ocupar o mundo de forma plena. Mais do que aliviar sintomas, é um chamado à presença. Não se trata apenas de sobreviver, mas de florescer.

Quanto maiores forem as possibilidades abertas no espaço vital de alguém, maior será a diferenciação de atitudes possíveis e mais facilmente a pessoa poderá escolher, facilitando seu processo de mudança. Psicoterapia é, portanto, abertura de possibilidades (Ribeiro, 2021). É da sua natureza promover o contato, de modo que o cliente possa, cada vez mais, voltar-se para dentro de si e se perceber no mundo como um ser de escolhas. Toda neurose implica a perda dessa qualidade do contato. Não por acaso, o cliente frequentemente chega à terapia sustentado por seus últimos recursos de autorregulação. O terapeuta precisa estar inteiro com ele, percebendo-o em sua inteireza, atento também ao que escapa à consciência (Ribeiro, 2016).

Compete ao terapeuta facilitar a integração dos diferentes sistemas do sujeito; ajudá-lo a cultivar uma consciência organísmica enraizada em sua realidade; a sentir o corpo como casa, como instrumento íntimo de trabalho, e não como algo estranho que carrega com dificuldade (Ribeiro, 1999). O processo psicoterapêutico é, assim, um movimento interno de dentro-fora-dentro que transforma a realidade psicodinamicamente, buscando integração em diversos planos – físico, psíquico, social, espiritual e cósmico. Quando harmonizados, esses planos permitem ao cliente reencontrar-se consigo mesmo em um autêntico estado de paz interior (Ribeiro, 2017).

E ser inteiro, nesse contexto, é um ato revolucionário. É recusar a mutilação das próprias emoções para caber em moldes externos. A sociedade nos ensina a amputar o sentir, a silenciar o choro, a conter a raiva, a polir a espontaneidade. Adoecemos, não por fraqueza, mas pela fragmentação que esse processo nos impõe. A neurose, dizia-se, é o afastamento do agora; mas ela é também afastamento de si. Ser inteiro não é ser perfeito, é ser real. É reintegrar as partes rejeitadas, costurar de volta os fragmentos perdidos, devolver voz ao que foi silenciado.

Mas essa reintegração dói. Exige atravessar os escombros do que foi negado, sentar-se à mesa com a criança abandonada, o adolescente calado, o adulto frustrado. Ser inteiro é dar lugar a todos, sem expulsar ninguém de si. É dizer sim a si mesmo – com tudo o que se é. Só há saúde onde há fluxo e consciência; só há cura quando nos reunimos novamente, peça por peça, gesto por gesto. Ser inteiro é também um gesto de abertura radical ao mundo: acolher a beleza e o caos, o erro e a surpresa, a falha e a dor. Não se trata de congelar a vida sob controle, mas de dançar com ela, ajustando-se criativamente a cada passo.

Estar inteiro não é estado final, é processo vivo. É presença que se refaz a cada escolha. Não é vencer o mundo, mas encontrar o próprio lugar nele, mesmo quando ele se move. E, diante dos tropeços inevitáveis, não se trata de fugir nem de lutar contra a vida como se fosse inimiga. Trata-se de escutá-la: “O que isso pede de mim agora? O que essa nova realidade convoca em mim que antes dormia?”.

Na prática, isso implica não se prender rigidamente a protocolos, mas estar presente de modo genuíno; confiar no vínculo e no processo do cliente; acolher sem interpretar; compreender a angústia em vez de tentar eliminá-la; responsabilizar em vez de dirigir; estar atento aos bloqueios de contato e às repetições automáticas; favorecer ajustamentos criativos, mas sem impô-los.