O mundo, na perspectiva gestáltica e conforme Ribeiro, não é algo fixo ou independente, mas uma realidade fluida, dinâmica e mutável, que se define a partir da relação com a mente que o observa e lhe atribui sentido. Ele é um conjunto de relações significativas pelas quais os seres se individualizam e se singularizam pela diferença, constituindo-se mutuamente como sujeito e objeto. Assim, não há mundo sem pessoa nem pessoa sem mundo: trata-se de uma relação intrínseca, indivisível, na qual cada parte afeta o todo e é por ele afetada.
Inspirada pelo holismo de Smuts, pela Psicologia da Gestalt e pela teoria de campo, a Gestalt-terapia entende o mundo como uma totalidade operante em constante autorregulação, sustentada por uma força sintética que harmoniza suas partes. O Universo, como expressão dessa totalidade, simplesmente “se deixa acontecer” em um fluxo de ajustamentos criativos, no qual pessoas e coisas coexistem e interagem. Enquanto os elementos não humanos seguem seu curso de atualização, o ser humano — dotado de consciência e liberdade — pode tanto colaborar com esse movimento quanto interrompê-lo, bloqueando seu próprio crescimento e afetando o equilíbrio do todo.
Ser pessoa, nesse contexto, é reconhecer-se como parte e expressão do mundo. A noção de pessoa-mundo aponta para a impossibilidade de pensar o indivíduo isolado do ambiente; nós e nosso meio somos uma só realidade. O organismo vive em permanente troca com o campo em que está inserido, sendo que qualquer alteração em uma de suas partes repercute na configuração total. Essa interdependência não é apenas biológica, mas também psicológica, social, cultural e espiritual. É pelo contato com o outro e com o ambiente que nos percebemos existentes e nos constituímos como sujeitos.
A autorregulação, princípio central da Gestalt-terapia, reflete a autorregulação cósmica: assim como o Universo se organiza criativamente, a pessoa tende ao ajustamento saudável quando reconhece sua pertença à totalidade. Uma compreensão ampliada do mundo favorece uma postura ética e responsável, na qual o indivíduo se percebe guardião da vida e colaborador da ordem universal. Ignorar essa interdependência leva a uma visão fragmentada e dominadora, que rompe a harmonia e ameaça tanto a pessoa quanto o planeta.
Nesse sentido, a Gestalt-terapia considera a pessoa como um ser singular e autônomo, mas sempre em interdependência com o mundo. Ela é criadora e criatura no processo cósmico, capaz de se modificar e de transformar o meio em que vive. Sua existência é um constante processo de ajustamento criativo às demandas do campo organismo/ambiente, no qual “dentro” e “fora” deixam de ser fronteiras rígidas para se tornarem dimensões de uma mesma realidade. Ao integrar-se como pessoa-mundo, o ser humano expressa sua singularidade, assume responsabilidade por si e pelo mundo e participa conscientemente do movimento evolutivo e criador da vida.
Na Gestalt-terapia, o self não é coisa, substância ou essência imutável; não é uma identidade fixa escondida no fundo da alma. É um processo vivo, pulsante e situado, ao mesmo tempo estrutura e movimento. Carrega marcas de uma trajetória — memórias, feridas, modos recorrentes de responder — mas não se encerra nelas. Como o negativo de uma fotografia, precisa do contato para se revelar; desenha-se na superfície viva do encontro com o mundo.
Pode-se imaginá-lo como um prisma de cristal: só manifesta formas e cores quando atravessado pela luz. Sem mundo, é latência. Sempre emerge em resposta ao ambiente, produzindo-se no ato de agir e se deixando transformar por esse ato. É a fronteira viva entre organismo e campo, o ponto de passagem entre o que me habita e o que me atravessa, entre o que fui, o que sou agora e o que posso me tornar.
Essa fronteira é lugar de síntese e tensão. O self integra forças múltiplas e muitas vezes contraditórias — desejos e limites, feridas e esperanças, medo e coragem. Quando alienamos partes da experiência, ele se empobrece, fragmenta-se e perde a capacidade de operar com inteireza. Os sintomas, nessa perspectiva, são tentativas falhas, mas legítimas, de processar forças excluídas da consciência.
O self integra forças muitas vezes contraditórias — desejos e limites, medos e esperanças — e sua saúde depende da capacidade de incluir e integrar essas partes. Quando elementos da experiência são excluídos, surgem sintomas como tentativas de processar o que foi dissociado. Um self saudável não é estável e imutável, mas fluido, capaz de reorganizar-se e responder ao mundo com autenticidade e criatividade.
Um self saudável não é estável ou previsível, mas fluido e presente, capaz de integrar sem engolir, responder com autenticidade e reorganizar-se mesmo em meio ao caos. A tarefa clínica não é desvelar uma identidade escondida, mas fortalecer sua função: a capacidade de responder, se posicionar, entrar em contato e metabolizar a experiência de forma íntegra. Não se trata de “descobrir quem sou”, mas de sustentar o movimento de me tornar.
Perls, Hefferline e Goodman descrevem o self como a força que organiza a gestalt no campo, processo de figura/fundo em situações de contato. Ribeiro o define como a síntese de como o indivíduo se apresenta e funciona num campo específico, ajustando-se criativamente às demandas e possibilidades do presente. Combina estrutura — integridade e continuidade — e processo — adaptação e crescimento. Essa tensão entre permanência e mudança permite integrar passado, presente e futuro numa narrativa coerente, sustentando crescimento e resolução de situações inacabadas.
O self opera por três funções interdependentes: id, ego e personalidade. O id é o núcleo vital, fonte de energia e excitamento, ligado ao corpo histórico e às sensações primárias, matéria-prima para o contato. O ego transforma essa energia em ação criativa, discriminando o que é relevante, integrando indivíduo e ambiente por meio de ajustamentos criativos. A personalidade sintetiza e dá significado às experiências, conferindo coerência, senso de identidade e abertura para novas figuras.
Essas funções se interligam como engrenagens de um sistema vivo: o id mobiliza, o ego organiza, a personalidade integra. Quando atuam em sinergia, sustentam a saúde psicológica, que não é ausência de conflito, mas habilidade de responder ao presente com autenticidade e abertura ao novo. Um self integrado é ponte flexível entre ser e existir, moldar e ser moldado, mantendo singularidade enquanto se transforma.
Assim, o self é a dança contínua entre história e invenção, permanência e mudança — fio de presença estendido sobre o tempo. É nele que habita a liberdade possível: o instante em que ousamos nos constituir com inteireza, mesmo quando o mundo nos pede fragmentos.
Clinicamente, o terapeuta não busca revelar uma identidade oculta, mas fortalecer a função de self, ampliando a capacidade de responder, integrar o que foi excluído e sustentar o próprio existir. A terapia, assim, não é sobre “descobrir quem sou”, mas tornar-me alguém capaz de me tornar — habitando o paradoxo de ser, sempre, um processo em direção a si mesmo.
Assim, o Self é arte de síntese e tensão — capaz de ser múltiplo e uno, estável e plástico, guardando a liberdade de se constituir no aqui e agora. A clínica, portanto, é o espaço onde se resgata essa fluidez, permitindo que a pessoa habite plenamente o processo de tornar-se.
A neurose é um cárcere sutil do self, como tentar dançar um tango com correntes nos pés: há movimento, mas sem a fluidez que transforma o gesto em arte. Na Gestalt-terapia, ela é compreendida como um bloqueio no ciclo de contato do self com o ambiente, uma interrupção no fluxo natural das funções do self — id, ego e personalidade — que dá origem a padrões repetitivos e disfuncionais. Tais padrões, embora um dia tenham servido como estratégias de sobrevivência, tornam-se obsoletos, sacrificando a espontaneidade e o ajustamento criativo.
Na raiz da neurose, o id — fonte de energia vital e excitamento — encontra-se reprimido ou distorcido. Seus impulsos primários são filtrados ou negados, gerando tensões e sintomas. O ego, encarregado de discriminar e agir de forma criativa, perde flexibilidade: pode se tornar rígido, submisso a introjeções cristalizadas, ou caótico, incapaz de organizar os impulsos do id. A personalidade, por sua vez, cristaliza-se em padrões antigos, deixando de assimilar novas experiências e engessando o self. O ciclo de contato — que deveria fluir entre excitamento, ação e assimilação — se interrompe, e o contato com a realidade passa a ser parcial, mediado por filtros antigos que bloqueiam a espontaneidade e alimentam a ansiedade.
Nessa condição, a personalidade assume o controle como um GPS insistindo em rotas conhecidas, enquanto o ego perde o volante e o id, o motor, fica sem combustível. O resultado é um viver no piloto automático, guiado por regras rígidas e desconectado das necessidades atuais. Exemplos são comuns: a pessoa evita expressar o que sente porque, no passado, isso lhe trouxe críticas; o impulso de agir é barrado pela crença de que “não é certo sentir raiva” ou “é tarde demais para mudar”, levando à apatia ou a explosões desproporcionais.
O excitamento, que nasce no id e nos move para satisfazer necessidades — fome, curiosidade, afeto, desejo — é abafado quando a personalidade, ao invés de orientar, passa a controlar. Isso rouba o vigor e sufoca a autenticidade. A energia do id, bloqueada, não desaparece: converte-se em tensão física, ansiedade, compulsões ou sintomas psicossomáticos. O ego, sem combustível, perde a capacidade de agir criativamente, e o ajustamento criativo é substituído por respostas automáticas e disfuncionais.
Para a Gestalt-terapia, a neurose não é um defeito, mas um modo de sobreviver quando a espontaneidade foi abandonada. Ela indica onde o self perdeu fluidez e onde o ajustamento criativo deu lugar a padrões rígidos. O trabalho terapêutico não visa eliminar a neurose, mas devolver ao self sua capacidade de pulsar com autenticidade — reconectando o ego ao presente, liberando a energia do id e colocando a personalidade a serviço, e não no comando.
A psicose, por sua vez, é um território em que o self perde sua coesão, e as fronteiras entre “eu” e mundo se tornam difusas ou inexistentes. Não é simples “perda de razão”, mas uma ruptura profunda no funcionamento do self. Na Gestalt-terapia, ela é vista como uma falência severa das fronteiras de contato: o id pode emergir de forma caótica, o ego perde a capacidade de discriminar e organizar a experiência, e a personalidade se fragmenta, comprometendo a continuidade e a identidade.
Na psicose, o contato com a realidade consensual se deteriora. A pessoa pode confundir conteúdos internos com estímulos externos, acreditar que pensamentos são inseridos em sua mente ou ouvir vozes inexistentes. A awareness se fragmenta: a figura e o fundo no campo perceptivo não são mais discerníveis, e o ciclo de contato se desestrutura — o id age sem filtro, o ego não medeia, e a personalidade não oferece coesão.
Exemplos ilustram essa condição: um impulso de correr pode ser sentido como perseguição iminente; uma metáfora é tomada como verdade literal; identidades múltiplas ou ausência de identidade podem alternar-se abruptamente. Há uma invasão desorganizada de emoções e fantasias, e o ajustamento criativo é substituído por caos ou retraimento extremo.
O trabalho terapêutico com a psicose, na abordagem gestáltica, busca reconstruir as fronteiras de contato e restaurar a integração das funções do self. Isso envolve fortalecer o ego para discriminar realidade e fantasia, reconstruir a personalidade para dar continuidade à experiência e regular o id, canalizando seus impulsos de forma mais segura. Técnicas que ancoram no aqui e agora — como descrever elementos concretos do ambiente — ajudam a restabelecer contato com a realidade, enquanto se valida a experiência interna sem reforçar distorções.
Tanto na neurose quanto na psicose, o objetivo é resgatar a fluidez do self, permitindo que id, ego e personalidade voltem a trabalhar em harmonia. Mesmo nas crises mais profundas, a Gestalt-terapia reconhece que o self guarda potencial de reorganização e cura, e que a autenticidade e o contato pleno são sempre possíveis de serem reencontrados.