Para Sartre, o ser humano vive em busca de uma completude que jamais se realiza plenamente. Por ser fundamentalmente vazio, tenta preencher-se com o que não é — e, mesmo quando alcança uma definição, ela rapidamente se torna obsoleta. Essa condição é chamada por ele de nadificação: a capacidade da consciência (para-si) de desfazer suas próprias determinações, transformando o fixo em transitório, convertendo o “é” em “depende”. A consciência, portanto, é marcada por uma indeterminação radical — um nada que impulsiona a liberdade e a escolha contínua.

Como afirmam Pereira, Mello e Bervique (2014): “O Nada é o farol que está à frente, acenando a todos. Por ser vazio, ausência, indefinição, ele suscita no homem um misto de terror e desespero pelo mistério que encerra e pela possibilidade de ter que enfrentá-lo […]. Nos momentos de crise existencial, o homem para, percebe que algo está errado e é tomado pela consciência do Nada.”

Encarar o nada é aceitar a desconcertante verdade de que não somos nada além do que escolhemos ser — o que configura um chamado à criação e ao engajamento. Assim, Sartre subverte a tradição essencialista da filosofia ocidental, ao afirmar que a existência precede a essência. Isso significa que não nascemos com uma natureza predeterminada, mas que nossa essência é construída nas experiências, nas escolhas e nas respostas que damos ao que nos acontece.

Na visão sartreana, o ser humano não é como uma semente que carrega em si características imutáveis. Ao contrário, é livre para escolher sua essência a cada instante. Ao negar a existência de uma verdade oculta sobre o sujeito, Sartre também rejeita a noção de um “eu verdadeiro” à espera de ser descoberto. Para ele, não há essência a revelar, apenas o que se faz. Como afirmou sobre Proust: ele não era um gênio latente, mas tornou-se um ao escrever obras geniais — ser gênio e manifestar-se como tal são atos simultâneos.

O ser humano, portanto, é a soma de seus atos. E somente a morte encerra esse processo contínuo de autoconstrução. Essa liberdade ontológica implica responsabilidade: somos os únicos responsáveis por nossas escolhas. Não há forças externas que nos determinem, não há desculpas absolutas. Estamos, segundo Sartre, “condenados à liberdade” — pois não apenas podemos escolher, mas inevitavelmente o faremos, mesmo quando tentamos evitar.

Essa liberdade, porém, não é confortável. Ela nos priva de fundamentos seguros para legitimar nossas decisões. Não podemos mais alegar que fomos predestinados a uma profissão, a um relacionamento, a um estilo de vida. Todas essas trajetórias foram construídas por nossas escolhas. E se algo não está como gostaríamos, cabe a nós transformá-lo — inclusive a omissão é uma escolha, mesmo que inconsciente.

Como afirma Belmino (2021): “Ser livre tem a ver com bancar nossas escolhas — que não são outra coisa senão tudo aquilo que fazemos mesmo quando não estamos escolhendo deliberadamente.”

Trata-se, portanto, de uma liberdade solitária. Cabe a cada um atribuir significado à própria existência e sustentar as consequências de suas escolhas. Isso gera uma sensação ambígua: ao mesmo tempo libertadora e angustiante. Partindo de seu vazio constitutivo, o indivíduo é convocado a criar seu próprio projeto existencial — decidindo suas finalidades, orientando seus esforços e transformando seus desejos em realidade. A liberdade, assim, se revela como autodeterminação comprometida.

Mesmo diante das limitações físicas, sociais e temporais que a realidade impõe, elas não nos determinam. Somos o que escolhemos fazer com essas condições. Como ilustra Sartre: “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que fazemos do que os outros fizeram de nós.”

Três constatações sustentam a angústia existencial: somos totalmente responsáveis por nós mesmos; cada escolha é um salto no escuro; e somos seres para a morte — o tempo não para. A ausência de uma essência fixa nos obriga a esculpir nossa existência em cada ato. Liberdade e angústia, então, caminham juntas: a primeira nos concede poder; a segunda nos confronta com o peso irreversível de cada decisão. Escolher é inevitável, mas nunca simples. Cada “sim” implica renúncia, cada decisão fecha portas que talvez jamais se reabram. E é nesse entrelaçamento de tempo, limites e possibilidades que a vida se revela como constante negociação com a finitude.

Essa tensão se manifesta em situações cotidianas. Imagine alguém diante da escolha de aceitar uma promoção profissional, que exigirá mais tempo e responsabilidades, ou permanecer em seu cargo atual, preservando o convívio familiar. Nenhuma das opções garante felicidade. É preciso escolher — e sustentar a escolha.

Essa responsabilidade de escolha nos obriga a sermos autores de nossas vidas. Como diz Ribeiro (1985): “Ninguém pode, de fato, executar seu projeto por ele; ele é o criador responsável de si próprio. ‘Sozinho e sem desculpas, o homem está condenado a ser livre’, diz Sartre.”

O exemplo clássico é o da pessoa à beira de um penhasco. Sente medo, mas também reconhece: nada a impede de se jogar. O que a detém é a decisão. Essa percepção é insuportável para muitos — pois evidencia que a escolha está sempre em suas mãos.

Além disso, a liberdade não diz respeito apenas ao eu: ela reverbera no mundo. Somos seres sociais, e nossas escolhas afetam os outros. A liberdade de um é mediada pela do outro. Como dizem Júnior et al. (2016), é na práxis coletiva que a história se constrói.

Ribeiro (1985) complementa: “A liberdade significa capacidade de decidir sobre a própria vida, mas esta liberdade não é absoluta, porque tem que ser responsável, pois o homem vive num mundo concreto, que o antecede e possui suas normas.”

Caubet (1981) reforça: “O homem carrega nos ombros o peso do mundo inteiro. Ele é responsável pelo mundo e por si mesmo, já que é o conjunto das escolhas pessoais que faz o mundo.”

Sartre sublinha que essa responsabilidade é inevitável. Não há como se livrar dela, nem mesmo ao desejar livrar-se: somos responsáveis até mesmo por esse desejo.

Belmino (2021) recorda que responsabilidade não é culpa, mas o ato de assumir o que nos acontece e nos posicionar ativamente diante da vida. Como aponta Holanda (2014), trata-se de uma ética da inter-relação — uma vida em diálogo, em comunidade.

Essa dimensão ética atravessa todo o existencialismo. A liberdade que nos constitui exige responsabilidade — e só assim pode gerar uma vida autêntica. A angústia, nesse sentido, é um lembrete da nossa condição: podemos moldar a vida, mas isso exige escolha. E a tentativa de fugir desse peso é o que Sartre chama de má-fé.

A má-fé é o autoengano: a tentativa de esconder de si mesmo a liberdade que se tem. São as desculpas, os papéis rígidos, as narrativas que nos convencem de que “as coisas são assim” e que nada podemos fazer. Mas negar a liberdade não a elimina — apenas nos aprisiona.

Fritz Perls, influenciado pelo existencialismo, compartilhava essa visão: o ser humano é um vir-a-ser em construção. Como Sartre, recusava ideias de destino e via o sujeito como autor de sua própria história. Mas enquanto Sartre chama de má-fé a negação da responsabilidade, Perls a nomeia evitação.

Evitar, para Perls, é recusar o contato com aspectos da experiência que nos incomodam. É fugir do vazio, do desconforto, da responsabilidade — gesto que compromete nossa presença no mundo. A evitação é, para ele, o núcleo da neurose: um enrijecimento do contato, uma recusa crônica da vivência plena.

Entre a má-fé sartriana e a evitação perlziana ressoa um mesmo alerta: a tendência humana a fugir de si. Mas ambos apontam um caminho de retorno — não ao que fomos, mas à possibilidade de sermos inteiros na experiência presente. A clínica, então, torna-se um espaço de travessia, onde é possível desmontar armaduras e acolher o que foi renegado. Ao terapeuta, cabe sustentar essa exposição sem julgamento, favorecendo o reencontro com a autenticidade.

Fritz propõe um retorno radical à presença: ao contato encarnado com o aqui-agora. É nesse sustentar que o vazio revela sua natureza fértil — não como limite, mas como abertura. E é por conter tal potência que o vazio exige compromisso: pois, diante do nada, tudo o que se ergue será fruto de escolha e risco.

A Gestalt-terapia, ao beber dessas fontes, acolhe a vertigem como parte do amadurecimento. Não somos algo a ser descoberto, mas algo a ser construído. Nesse “nada” reside a liberdade — que pesa, exige e responsabiliza. Assumir isso não nega a fé, mas torna crer uma escolha. A decisão, então, deve nascer do contato com o que nos é autêntico — não de fórmulas ou heranças automáticas.

Na Gestalt-terapia, é do silêncio que emerge a verdadeira escolha. E é no vazio que essa escolha se torna ato ontológico. Não há espaço para passividade: ser passivo é recusar o chamado essencial — o de escolher, com presença e responsabilidade, o que fazer com aquilo que nos atravessa.